Nesta semana, faleceu um colega de minha turma
de Engenharia da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, colega que se
tornou um grande amigo, o engenheiro e professor Eluízio de Queiroz Orsini.
Casado com Laïs, também colega de turma, o casal manteve, comigo e Leilah, minha esposa, um
forte laço de amizade, da juventude à idade avançada.
A triste notícia me trouxe à lembrança um
acontecimento que nos aproximou, a mim e ao Eluízio, tornando-nos, além de colegas de classe,
grandes amigos. Esse acontecimento foi uma viagem que fizemos, em grupo, no
último ano de nosso curso.
Transcrevo a seguir, de meu primeiro livro (o
“Histórias do Terceiro Tempo”, publicado em 2009) a narração dessa viagem.
A lo mejor me deportan...
Passei um sufoco em La Paz em um ensolarado
domingo de julho. Julho de 1955.
Era meu último ano de Engenharia e eu estava na
Bolívia, com um grupo de colegas, em uma viagem de final de curso. Embora
tivesse levado dinheiro acima do valor orçado (42% a mais) a viagem não ocorreu
conforme as previsões do grupo, quanto aos meios de transporte e quanto à ajuda
de hospedagem por parte das autoridades locais, em cada cidade que íamos
visitar. As despesas reais estavam bem maiores do que as planejadas. Eu corria
o risco de não ter dinheiro suficiente para voltar ao Brasil.
Viagem de estudante daquele tempo era fogo! Nada
de Europa, Estados Unidos e outros lugares do Primeiro Mundo. E, também, não
podia ser muito longe, porque viajar de avião era para gente rica.
Havia, porém, a tradição de, no fim do curso, os
universitários fazerem uma viagem, supostamente relacionada com os estudos,
para as quais conseguiam algumas vantagens e favorecimentos nos preços de
passagens e hospedagens.
Formamos um grupo de oito estudantes da Poli, a
Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e de três da Pauli, a
Escola Paulista de Medicina, para fazermos uma viagem à Bolívia.
A iniciativa e a
organização foram de meu colega, Eluízio Orsini, o Zico, e seu amigo
Ciro, também politécnico. Em memorável reunião, temperada pela fumaça dos
cachimbos dos dois, eles nos descreveram o programa: de São Paulo a Bauru por
trem da Sorocabana ou da Companhia Paulista; de Bauru para Corumbá, pela
Estrada de Ferro Noroeste. Então, teríamos a oportunidade ímpar de conhecer a
Estrada de Ferro Brasil-Bolívia, recém-inaugurada pelo Presidente Café Filho,
vice-presidente que assumiu o governo após o suicídio de Getúlio Vargas. Essa
etapa nos levaria de Corumbá a Santa Cruz de La Sierra. A seguir, Cochabamba,
La Paz e, se possível, chegaríamos ao Peru pelo lago Titicaca. Conseguiríamos
as passagens de trem e, quanto às despesas de hospedagem, a expectativa, nada
modesta, era de que os prefeitos e outras autoridades de cada cidade se
sentiriam honrados em pagá-las por nós. A partir dessas premissas, foi feito o
orçamento per capita. Compras e extras ficariam por conta de cada um.
Em matéria de aprendizado, faríamos uma enorme
quilometragem de estrada de ferro e, em termos de aventura, a viagem seria um
prato cheio. Nada melhor para jovens de vinte e poucos anos que iriam cair na
vida dura em seis meses!
De posse das passagens de trem para a ida e a
volta no percurso São Paulo – Corumbá, saímos de São Paulo no início de julho.
De São Paulo a Bauru, tudo muito bem – o trem era
confortável, a viagem foi muito boa. Chegamos à tarde e, à noite, embarcamos
para Corumbá. O trem já não era tão bom, mas conseguimos leitos, muito
importantes porque a viagem iria durar uns três dias. Depois de um bom trecho
ainda no estado de São Paulo, cruzamos o rio Paraná, entramos em Mato Grosso
(hoje, do Sul), passamos sucessivamente por Três Lagoas, Campo Grande,
Aquidauana, com algumas paradas imprevistas por problemas na ferrovia, até
chegarmos a Corumbá. Como “estudo”, tivemos a experiência de usuário da
ferrovia em si e o conhecimento de algumas pontes importantes (embora não
parássemos para observá-las melhor, pois
estávamos em um trem comum de passageiros).
Em Corumbá, onde tivemos dificuldade para
conseguir hotel, fomos acomodados em um salão grande do Hotel Venizelos, como
se estivéssemos em um alojamento militar – e pagamos bem. Lá constatamos que,
além do nosso grupo, mais uns dez grupos estavam indo para a Bolívia, entre os
quais um da Faculdade de Arquitetura da USP, outro de Ciências Sociais, outro
da Faculdade de Odontologia de Alfenas, Minas Gerais. Iríamos encontrar
estudantes brasileiros ao longo de toda a viagem.
Ao tentar programar a viagem de trem para Santa
Cruz, constatamos que o trem utilizado para a inauguração da Brasil-Bolívia era
especial, não circulava normalmente; a viagem teria de ser feita num trem misto
(passageiros e carga) em condições totalmente inadequadas. Entre desistir da
viagem e prosseguir de outra forma, optamos por fretar um avião, juntamente com
os colegas da Arquitetura, para o trecho Puerto Suarez – Santa Cruz. Puerto
Suarez fica na Bolívia, do outro lado do Rio Paraguai, em frente a Corumbá.
Cruzamos a fronteira, jantamos e dormimos em Puerto Suarez e embarcamos na
manhã seguinte. Das acomodações dessa noite, não me lembro, mas do jantar, cujo
prato principal era uma espécie de sopa de fubá, sim. Para horror do Sérgio
Bastos, que era um bocado enjoado com comida, experimentei a gororoba – eu era
bom garfo e corajoso.
Ao mencionar o Sérgio Bastos, meu colega e amigo
desde o primeiro científico, primo da Leilah, lembrei-me de que ainda não
contei quem participou desta aventura. Da Politécnica: além de nós dois,
Eluízio Orsini, um dos organizadores já mencionados, colega que conheci melhor
na viagem e com quem mantenho grande amizade; agora somos velhos amigos velhos;
o Ciro, o outro organizador, amigo do Zico; o Sérgio Cataldi, outro grande
amigo meu até hoje, com quem o Bastos e eu formamos uma “panelinha” para
revezamento em algumas aulas teóricas (a “Panela de Ouro”, nome inspirado no
papel amarelo que usávamos para nossas anotações); Antoninho Mellone, embora da
nossa idade, primo do pai da Leilah; Olympio Pereira de Sousa, um dos goleiros
do nosso time de várzea, o “ijk”; Airton Bassani, colega sério e compenetrado;
Eduardo Buenaventura de Bello Pedreschi, o Bello, grande panamenho, bolsista,
ele e eu servimos de intérpretes para o grupo, quando surgia na comunicação
alguma dificuldade com o Espanhol. Da Paulista: o Emílio, o Junqueira e o Lima,
dos quais só me lembro do nome de guerra, embora me recorde muito bem deles.
Deu onze? Então relacionei todos.
O grupo: aproveitamos uma parada
forçada do trem
Na manhã seguinte, lá estava, no aeroporto de
Puerto Suarez, um belo DC3 esperando por nós.
O DC3 foi, por muito tempo, o avião mais usado no
Brasil e, provavelmente, nos países vizinhos, nas décadas de 50 e 60 do século
passado. Era um bimotor, a hélice, motor de explosão, asa baixa, relativamente
seguro; seu trem de aterragem era composto de duas rodas sob a asa,
complementado com uma na cauda. Não me lembro de grandes problemas com esse
tipo de avião.
Embarcamos, o nosso grupo e o da Arquitetura, do
qual participava um conhecido meu, o Roberto Frioli, namorado (depois noivo e
marido) da Isabel, colega de turma e amiga da Leilah. Como os arquitetos eram
dez, o avião estava levando 21 passageiros, todos estudantes na casa dos vinte
e poucos anos, cheios de energia e animados com a viagem.
A grande emoção do voo aconteceu quando organizaram
um programa de visitas à cabine dos pilotos, três ou quatro visitantes de cada
vez. Na minha vez, um coleguinha perguntou ao comandante sobre a potência do
avião, se era adequada àquela rota. O comandante respondeu algo como: “Claro,
esta aeronave voa com apenas um dos motores! Quer ver?” e desacelerou (ou terá
mesmo desligado?) um dos motores. Até hoje me lembro do frio que senti na
barriga!
A menos da demonstração do piloto, a viagem foi
normal e chegamos bem a Santa Cruz de La Sierra.
Santa Cruz, em nosso plano de viagem, era apenas
uma parada, não tínhamos planejado nenhuma excursão ou visita especial.
Limitamo-nos a conhecer o centro da cidade, sua praça principal, onde fica a
Catedral. Chamou-me atenção, além da arquitetura pesada da Igreja, a elevação
das calçadas, de cerca de meio metro acima do nível da rua. Fomos visitar a
prefeitura para pedir ajuda na hospedagem e no transporte para Cochabamba, mas
não conseguimos nada.
Novamente, tivemos de viajar de avião, por nossa
conta. Era um avião de carreira, um quadrimotor, provavelmente um DC4. O avião
tinha uma configuração padrão de assentos; a única coisa diferente era um
grande tubo de oxigênio no fundo, junto ao posto da aeromoça (comissária de
bordo). Durante o voo, ficamos sabendo para que servia o tubo: como estávamos
subindo para o altiplano (de 400 a 2500 metros de altitude, em números
redondos) e a aeronave não era equipada com máscaras de oxigênio como nos
aviões de hoje, a aeromoça tinha de injetar, intermitentemente, oxigênio na cabine.
Lembro-me que Cochabamba nos pareceu uma cidade
agradável e que ficamos num bom hotel, conseguindo desconto mediante o
alojamento de três ou quatro por apartamento.
De Cochabamba a La Paz, um dia de trem, mais ou
menos. Os carros eram relativamente confortáveis e, à noite, em Oruro, passamos
a um carro com cabines. Conseguimos, porém, apenas nove leitos para os onze
passageiros; dois tinham de ficar de fora e dormir nas poltronas do carro
comum. Decidimos driblar os fiscais do trem e fomos os onze para as cabines,
sorteando duas duplas. Fui sorteado, tive de dormir com o Cataldi; ele não era
lá muito magro, mas eu era. Não houve problema, apenas o suspense da visita do
chefe de trem que foi examinar as cabines com uma lanterna. Escondemo-nos bem e
passamos no exame.
Chegamos a La Paz no dia seguinte, à tarde. Como a
cidade fica numa espécie de cratera, a última etapa da viagem foi a descida do
trem para a estação, que deve ter durado mais de meia hora. Estávamos descendo
de uns 4000 e poucos metros de altitude para apenas 3660!
Tínhamos cumprido, então, o seguinte roteiro:
Desenho sobre o mapa do Google
A essa altura da guerra, já não tínhamos mais
ilusão de conseguir qualquer desconto de hospedagem, de forma que optamos pelo
Itália, hotel relativamente afastado do centro, um prédio antigo e simples,
porém confortável, com uma quadra de bola ao cesto (basquete). Ficamos todos
animados; na mesma tarde de nossa chegada, decidimos nos exercitar. Alguns, que
trocaram logo de roupa e chegaram antes à quadra, jogaram uns minutos de
basquete, mas depois armamos um racha (pelada) de futebol de salão. Então, meus
caros leitores, a experiência inesquecível: aqueles garotos, em plena forma
física, praticantes de futebol e outros esportes, em quinze minutos estavam de
língua de fora! Por isso, sempre que assisto, pela televisão, a jogos de algum
time de fora naquela cidade, lembro-me de nossa surpresa e entendo muito bem a
dificuldade dos jogadores.
Em La Paz até que passeamos um pouco: conhecemos,
e lá fomos várias vezes, a praça central, em frente ao Palácio do Governo. Na
praça, como informação turística, mostraram-nos o poste onde um presidente
deposto (Villaroel) tinha sido enforcado depois de assassinado no Palácio.
Fomos ao mercado, onde fizemos pequenas compras, como meias de lã e gorros (os
“pasamontañas”, aqueles gorros coloridos que cobrem as orelhas) mas eu nem
tentei comprar a estola de pele que tinha planejado levar ao Brasil, pois já
sabia que o dinheiro estava ficando curto. Visitamos também a Universidad Mayor
de San Andrés, onde encontramos um estudante falando um português perfeito e
sem sotaque espanhol; todos pensamos que ele fosse brasileiro, mas era um
boliviano que tinha morado no Brasil. Fora do comum para nós, o prédio da
Universidade era um edifício bem alto no centro da cidade.
Nossa possível viagem ao Peru, através do
Titicaca, foi descartada por falta geral de recursos, mas quisemos conhecer o
lago navegável mais alto do mundo. Tomamos um trem para o porto de Guaqui,
aonde chegamos depois de umas quatro horas. Era um vilarejo à beira do lago,
largas ruas não pavimentadas, não vimos nada de interessante, apenas conhecemos
o lago e o porto. Nada de mais a não ser o registro de que estivemos lá.
Alojamo-nos numa espécie de pensão, uma casa bem grande de dois andares, mas
que não estava em condições de hospedar o grupo devidamente. O jantar, um
macarrão aguado e sem graça, foi improvisado e foram colocadas camas em quartos
bem grandes no andar de cima. A perspectiva era triste: uma noite naquele lugar
ermo, sem nada que fazer. Mas daí, alguém, tentado pelo demônio, descobriu e
comprou umas garrafas de pisco num armazém próximo e resolvemos provar.
Primeira impressão: “Bebida fraca, não se compara com a cachaça.”; depois: “Já bebi duas doses e não sinto
nada.”; e assim foi até que, um a um, ficamos todos de porre, o maior porre
coletivo que presenciei na vida. À medida que um deles ficava ruim, os outros
ajudavam, levavam-no para tomar ar na rua, mas todos acabaram sucumbindo. O
Antoninho e eu estávamos aguentando bem, eu estava todo senhor de mim,
apreciando pela janela do quarto o céu mais estrelado que vi em minha vida.
Então, o Antoninho me ofereceu um cigarro (eu não fumava e, acho, ele também
não). Comecei a fumar, sem tragar. De repente, o bicho pegou – tive de descer
ao banheiro às pressas e vomitar a alma. O Antoninho também capotou.
No dia seguinte, ao embarcarmos no trem, de volta
para La Paz, estava todo mundo meio zumbi, quieto, curtindo a ressaca.
A excursão a Guaqui foi dramaticamente
inesquecível. Para a dona da pensão também, que disse que nunca mais iria
hospedar brasileiros!
O que vimos de interessante em La Paz foi a festa
tradicional dos índios, realizada em julho, a “Diablada”. Assistimos, no
Estádio de Futebol de La Paz, ao espetáculo dos grupos de várias cidades, numa
organização semelhante ao desfile de escolas de samba. Os participantes se
fantasiavam de “diablos”, pintados e com chifres; tocavam flautas longas,
acompanhadas por tambores. O colorido das roupas, não só dos artistas como da
própria audiência, era muito bonito e as danças bem movimentadas. Para mim,
entretanto, depois de ver umas três diabladas (a mais famosa era a de Oruro) já
tinha visto tudo, pois parecia uma repetição infindável. Assim mesmo, parece-me,
assistimos a todo o espetáculo.
De qualquer forma, valeu a pena.
Meus companheiros foram ainda a Chacaltaya, pico
da Cordilheira dos Andes perto de La Paz, mas eu não pude ir porque tive de
antecipar a viagem.
Para que não ficasse sem dinheiro para voltar ao
Brasil, problema que estudantes de outras faculdades já estavam tendo,
antecipei minha data de volta. Meus colegas iam voltar na terça ou quarta e eu
programei voltar no domingo para aproveitar, em Santa Cruz, uma carona com os
cariocas da Escola Nacional de Engenharia, que tinham conseguido o transporte por trem
especial de Santa Cruz de La Sierra para Corumbá.
Eu tinha, então, de providenciar, junto à Polícia,
em La Paz, minha documentação de volta, uma espécie de salvo-conduto, exigência
do governo deles daquele tempo. Tudo isso, em pleno domingo!
Fui ao quartel da Polícia. Dei sorte, porque o
oficial que me atendeu, todo galã, estava com a noiva. Talvez por estar com
ela, foi muito cordial, me atendeu muito bem e preparou o documento. Só que eu
tinha de conseguir também a assinatura de uma autoridade de outro órgão do
governo, que não funcionava aos domingos. Como eu tinha de tomar o avião
naquela tarde, o oficial me deu o endereço da casa da pessoa – e para lá fui.
Encontrei a casa do homem. Por sorte ele estava,
me atendeu muito bem e, afinal, consegui sua assinatura no documento.
Do aeroporto de La Paz, voei para Santa Cruz,
encontrei os cariocas, me juntei a eles e fomos de trem para Corumbá, o que
levou uns três dias de viagem, pois à noite o trem ficava parado para o
maquinista dormir. As estações também fechavam à noite, de modo que não
podíamos comprar comida para jantar – eta viagem boa! As dificuldades foram
compensadas pela alegria e cordialidade da turma. Afinal, chegamos de volta ao
Brasil.
Em Corumbá, juntei-me novamente ao meu grupo, que
voltou da Bolívia de avião. Finalmente, tomamos o trem de volta para São Paulo.
Não posso me esquecer, contudo, da sorte que tive
naquele último domingo em La Paz, e, especialmente, da atenção do homem que
assinou o meu salvo-conduto. Funcionário de um governo forte, num país com
histórico de várias revoluções, ele me disse algo que me calou fundo e que
gravei na memória. Quando agradeci a gentileza dele e lhe dei um cartão com meu
endereço, dizendo para me procurar se algum dia fosse a São Paulo, ele tomou o
cartão, um pouco hesitante, fez uma cara um tanto desanimada e falou: “Está
bien, a lo mejor me deportan...”.
Sei de cinco companheiros do grupo
que nos deixaram antes do Zico; dos outros, não tive notícia. Contudo, durante muito tempo,
essa viagem de jovens estudantes foi uma alegre recordação para nós, por tudo que vimos e passamos. Para mim, hoje, carregada de forte emoção.
Washington Luiz Bastos Conceição