domingo, 27 de outubro de 2019

“Irish Coffee”


Lauro, filho do Sérgio Bastos (este, meu grande amigo de juventude e primo da Leilah, minha mulher) me presenteou há algum tempo com uma garrafa de uísque, que guardei para uma comemoração especial. Em agosto, na data de seu aniversário, resolvi comemorar com ele, à distância, abrindo a garrafa e tomando duas doses, brindando via WhatsApp. Não sei por quê, eu pensava que era um uísque puro malte; ao abrir a garrafa, verifiquei que era um uísque irlandês, triplamente destilado e muito bom, que me fez lembrar de minhas visitas ao café Buena Vista, em São Francisco, na Califórnia.

Leilah e eu, até alguns anos atrás, viajamos à Califórnia com frequência, visitando nosso segundo filho, nora e netos, que moram em uma daquelas cidades simpáticas do Vale do Silício. Aproveitávamos, então, para fazer turismo pelo “Golden State”, conhecendo novas regiões e revendo aquelas já conhecidas. A visita à encantadora São Francisco era obrigatória, com um programa tradicional nosso, que é, hoje, padrão, realizado por todas as pessoas com quem converso sobre viagens à Califórnia. A particularidade, no nosso caso, é que esse roteiro, como outros na região, fazemos desde 1969, quando da mudança de volta da família, dos Estados Unidos para São Paulo, após um período de residência temporária em Chicago.
Esse programa incluía, sempre, o passeio pelo "Fisherman's Wharf", que descrevi assim em meu livro “A Califórnia e Nós”, publicado em 2015:

“Em vários capítulos deste livro menciono lugares em São Francisco e vizinhança que visitamos sempre que vamos à Califórnia, numa espécie de ritual, de reverência, quase uma obrigação que cumprimos prazerosamente, pois “matamos a saudade”. Estão nesta categoria pontos muito interessantes da cidade.
Começo com o "Fisherman’s Wharf", em São Francisco – com seus restaurantes, lojas, o Café Buena Vista e a fábrica de chocolate Ghirardelli, estabelecimentos preparados para receber turistas de todo o mundo. Não me incomodo de ser mais um deles, apenas procuro não me deixar explorar com bugigangas. Quero tomar meu “Irish Coffee” no Buena Vista,  acompanhado ou não de casca (frita) de batata; quero almoçar peixe ou frutos do mar (incluindo caranguejo, se possível), com uma taça de vinho, em um restaurante indicado pelo Cássio, meu filho, na ocasião (pois o desempenho deles varia com tempo); ultimamente, tem sido o Scoma’s; depois, quero provar um chocolate no Ghirardelli e comprar umas barras para levar para casa. E, tudo durante o dia, caminhar por aquelas ruas movimentadas onde as pessoas, bem-humoradas por estar de férias, passeando, até acham graça quando um maluco barbudo se esconde num canto qualquer para dar susto nos transeuntes.”


O Buena Vista e o bondinho famoso. (foto copiada do site do café)
Na última vez que estivemos no Buena Vista, eu trouxe de lá um folheto com a história e a receita de seu famoso “Irish Coffee”, mas não havia pensado, ainda, em prepará-la, porque me pareceu um tanto complicada e, o que é básico, não costumo ter uísque irlandês em casa. Com o presente do Lauro, decidi tentar fazê-lo, com a colaboração da Leilah. Ela providenciou o creme de leite, que é acrescentado à mistura do uísque com o café e um pouco de açúcar. Há todo um preparativo que envolve aquecer fortemente o copo, o qual deve ter características específicas para a operação.


A preparação do "Irish Coffee" (foto copiada do site do café)
Conseguimos seguir as especificações e resultou um drinque muito bom e bonito que degustamos com prazer. Uma dose para cada um foi suficiente e combinou muito bem com o frio moderado do inverno carioca. Foi um sucesso.
Essa nossa “cerimônia” do “Irish Coffee”, provocou uma evocação das viagens que fizemos por aquela região tão bonita e agradável. Além do "Fisherman's Wharf", lembramos de Sausalito e Tiburón, pequenas cidades de turismo ao norte e próximas de São Francisco, nas margens da baía, com suas paisagens encantadoras, parques, casas e edifícios que mesclam arquitetura tradicional e contemporânea, e bons restaurantes, muito bem preparados para receber turistas; do Napa Valley, mais ao norte, e suas vinícolas; de Calistoga, com seu gêiser e banhos de lama; de Bodega Bay, aquela cidadezinha litorânea dos pássaros que se tornou famosa pelo extraordinário filme de  Hitchcock; da surpreendente Mendocino, cidade histórica no norte do estado que parece cenário de filme antigo, à qual chegamos dirigindo pela One, rodovia famosa da costa oeste, com suas paisagens impactantes e seus viadutos monumentais. E, mais, lembramos dos passeios que fizemos ao sul do Vale do Silício, no litoral, por Santa Cruz, Monterey e a encantadora Carmel, cidades também muito famosas e conhecidas de vários de nossos amigos brasileiros, com seus “fisherman’s wharfs”, praias e parques, com destaque para o Aquário de Monterey e a Missão de São Carlos Borromeu,  em Carmel, fundada pelo Padre Junipero Serra.

Aos 87 e 84 anos de idade, respectivamente, eu e Leilah reconhecemos que é muito difícil, para nós, voltarmos a fazer uma viagem aérea de 17 horas de duração total, mesmo com o apoio de cadeiras de rodas nos aeroportos e com um seguro saúde de emergência.  
A "happy hour" com o “Irish Coffee” nos levou a viajar (no bom sentido) em nossas recordações, sem tristeza, voltando a viver momentos muito agradáveis da vida.

Muito se critica quem quer viver no passado, queixando-se das vicissitudes do presente. Não é este realmente nosso caso, convivemos bem com nossas limitações, procurando manter-nos ativos nas tarefas que ainda podemos realizar. Reviver eventos prazerosos do passado não é uma atitude negativa, pois nos dá uma sensação de termos aproveitado o que a vida nos ofereceu de bom. É uma posição semelhante à de Pablo Neruda ao escrever seu livro de memórias, expressa claramente no título: “Confieso que he vivido”.

P.S. Ao caro leitor ou prezada leitora que resolver experimentar o “Irish Coffee”, faço voz de locutor de televisão e peço encarecidamente que beba com moderação.

Washington Luiz Bastos Conceição


Notas:
1. Uma tradução de “Fisherman’s Wharf” é Cais dos Pescadores.
2. Dias depois de nossa “happy hour” acima, encontrei no cardápio de um café, aqui no Rio, o item “Irish Coffee” e resolvi experimentar. Era outro “drink”: uma pequena dose de uísque escocês com café, “soterrada” por uma quantidade enorme, desproporcional, de creme “chantilli”. Não gostei.
3. O site do Buena Vista é www.thebuenavista.com .
4. O livro “A Califórnia e Nós” foi publicado com fotos coloridas, inicialmente na versão digital (e-book) e, a seguir, na versão impressa. Esta resultou muito cara em relação ao objetivo do livro. Decidi, então, publicar a versão impressa em branco e preto, com o título “Nós e a Califórnia”.
Para quem se interessar pelo livro, recomendo o e-book, disponível na www.amazon.com.br (pesquise pelo meu nome).  É bem baratinho e pode ser lido no celular, no computador e no tablet, mediante a instalação gratuita do programa Kindle.
5. Junipero Serra foi um missionário espanhol, franciscano, que fundou várias missões na Califórnia, no século XVIII. Foi canonizado em 2015.

sábado, 12 de outubro de 2019

"Sabadei"


No sábado passado, Jurema, minha filha, comemorou seu aniversário. Era uma data importante, para ela e para nós da família.
Acontece que ela tem uma infinidade de amigos, de várias rodas, e não dá para fazer uma reunião pequena. Teve de reservar um restaurante para poder receber todos seus convidados. Claro, os pais, irmãos e cônjuges estavam incluídos. Portanto, lá fomos nós, Leilah e eu, para um restaurante na Marina da Glória, aqui no Rio, área que não visitávamos havia vários anos. A última vez em que estivemos lá, talvez mais de dez anos atrás, foi para um passeio de barco promovido por uma das noras, Adriana, em seu aniversário.
Chamamos um carro por um aplicativo, planejando chegar ao local da festa às seis da tarde, mas o “Rock in Rio” havia posto a cidade em ebulição, de forma que o trânsito estava imensamente congestionado em todos os caminhos. O pobre satélite não conseguiu nos dar uma rota que fluísse razoavelmente. Levamos mais de uma hora e meia para chegar ao destino, fazendo um percurso que, em condições normais, teria sido feito em meia hora.
Ao chegarmos, finalmente, à Marina da Glória, ficamos admirados com a total mudança da área em relação ao que tínhamos visto anos atrás.
O automóvel nos deixou frente a uma portentosa escadaria, ponto de embarque e desembarque de passageiros de taxi, escadaria essa que leva à entrada do edifício do centro de convenções da Marina. Seu subsolo é a área de estacionamento do complexo. Ao lado do edifício, há outra escadaria que leva aos ancoradouros e aos restaurantes. Devido a nossa dificuldade de locomoção, Jurema providenciou para que um carrinho elétrico da equipe de segurança da Marina fosse nos buscar para levar-nos ao restaurante. Lá chegando, encontramos uma reunião animada.
O restaurante fica em um local muito bonito, elevado em relação ao cais, em meio a um terreno gramado de onde apreciamos uma bela paisagem noturna que abrange os edifícios que ficam de frente para o aterro do Flamengo, desde a Rua do Passeio, no centro, até a enseada de Botafogo, passando pela Avenida Beira-mar. Mais próximo, divisávamos um ancoradouro com alguns belos barcos.
A foto abaixo, tomada naquela noite, mostra parte dessa vista espetacular:

Foto por Suely Porto Leite - 05/10/2019
 Jurema nos recebeu e nos encaminhou para a mesa que nos tinha reservado.
No trajeto, fomos cumprimentados por vários amigos dela, entre os quais alguns já nossos conhecidos que, pela iluminação à meia luz, pelo fato de vários rapazes terem deixado crescer a barba e pela nossa deficiência de memória visual, tivemos, de imediato, dificuldade em identificar. Afinal, éramos dois idosos velhos de guerra, exceções entre os convidados por sermos os pais da aniversariante, frente a pessoas mais jovens que não víamos havia algum tempo.
Sentamo-nos à mesa com um casal muito amigo e recebemos a visita e os cumprimentos de vários convidados, que nos homenagearam com sua atenção.
O DJ ("Disk Jockey"), em plena atividade, estava nos brindando a música de fundo.
Jantamos comida italiana com uma garrafa de vinho e ficamos acompanhando a chegada dos novos convidados e o movimento todo da festa.
Experiente em festas de aniversário, Jurema quis apagar logo as velinhas e cantar os parabéns para evitar que, mais adiante, esta cerimônia sugerisse que a festa estaria terminando; ela queria uma festa solta.  Depois da cantoria (que incluiu, como é hábito na turma dos meus filhos, o hino do clube Flamengo) e de servir o bolo, abriu-se a pista para a dança e, aí, a festa pegou fogo com música de discoteca e o ritmo com a batida forte que me parece (os mais jovens que me perdoem) um bate-estaca. O fato é que a turma se animou e dançou para valer. Também dançaram samba, vários dos convidados com muita competência, especialmente aqueles do grupo de samba da Jurema, verdadeiros passistas que nos cumprimentam com a reverência que o mestre-sala faz à porta-bandeira das escolas de samba.
Lá pelas tantas, Jurema encomendou ao DJ uma sessão especial de Caymmi em atenção a mim; fizeram uma roda para, inicialmente, ela dançar comigo e Leilah dançar com Alexandre, seu marido; a seguir, dançamos, eu e Leilah, o que fizemos como nos velhos tempos, de rosto colado.
Passado esse interregno, mandaram ver música baiana, com uma dança atlética vertiginosa em que eles mostraram uma energia intensíssima. Fiquei muito impressionado, pois a média de idade dos dançarinos está acima dos cinquenta anos. Realmente, as pessoas, hoje, parecem ter o vigor daquelas que, no meu tempo, tinham uns vinte anos menos.

Um dos amigos, que estivera em festa de nossa família, perguntou se eu iria fazer um discurso. Respondi que, se me pedissem, eu faria; e passei a me preparar mentalmente para falar. Entretanto, não houve oportunidade, a música não parou; a animação dos dançarinos não arrefecia e o DJ era incansável. Concluí que uma parada para um discurso, por mais breve que fosse, iria atrapalhar.
O discurso que eu teria feito seria curto e, mais ou menos, algo assim:


“Caríssimos amigas e amigos de Jurema e de seus irmãos que, pela lei transitiva da amizade, se tornaram, também, amigos de Leilah e Washington:
Venho agradecer a todos a valiosa gentileza da presença à comemoração do aniversário de minha filha, especialmente nesta noite em que está muito difícil transitar pela Cidade Maravilhosa.
Tenho pouco a falar, pois já contei a história da chegada da Jurema em várias oportunidades.
Não vou repetir que, quando Leilah e eu nos casamos, tínhamos o objetivo de ter um casal de filhos e que, depois do nascimento do Luiz, encomendamos a Paula – que não veio; tivemos o Cássio e renovamos a encomenda da menina – chegou o Francisco. Então, considerando que uma das minhas primas teve oito filhos homens antes de desistir da menina, paramos com as encomendas. Mais de três anos depois, quando estávamos morando temporariamente em Chicago, a surpresa: Leilah ficou grávida. Imediatamente, ela concluiu que essa criança, por teimosa, seria uma menina. E acrescentou: uma pessoa teimosa que conheço é sua mãe; a menina terá o nome dela. Peguei minha mulher na palavra.
Não vou repetir que meus colegas americanos daquela temporada acharam graça quando lhes contei que minha filha nasceria no Brasil com um carimbo nas costas: “Made in USA”.
E não vou repetir que esta moça de um metro e oitenta de altura nasceu prematura, de sete meses.
Quando anunciei o nascimento de minha filha aqui no Rio, uma colega de trabalho, entusiamada, afirmou que Jurema era um nome muito forte, de mulher bonita e determinada. Acreditei firmemente, porque minha mãe era assim.
Bem, a garota cresceu, sempre muito amiga dos pais e dos irmãos, desenvolveu-se e está encarando a vida com destemor.
A presença de vocês nesta noite é uma prova cabal de que uma das qualidades de Jurema é saber fazer amigos.
Pessoal, estas eram as poucas palavras que eu queria lhes dirigir hoje. Fico por aqui.
Mais uma vez, OBRIGADO, GALERA!”


Na hora de irmos para casa (a festa continuava animada) fomos, Leilah e eu, brindados com uma carona muito especial, de um casal muito amigo de meus filhos, com a particularidade de ela ser a médica, clínica e geriatra, que cuida de nós. Seu marido é da turma do Leblon, companheiro dos meninos desde a juventude e, como eles, flamenguista doente. Ao aceitar o convite da carona (eles moram em prédio bem próximo ao nosso) brinquei dizendo que seria ótimo, pois teríamos acompanhamento médico a bordo.
Ao deixarmos a Marina da Glória, nossa médica dirigindo, tivemos de dar uma grande volta, passando pelo aeroporto Santos Dumont, para pegarmos a pista de volta do aterro em direção à zona sul. Ao nos aproximarmos do túnel que leva a Copacabana, fomos parados por uma blitz da Lei Seca. Por mais que tenhamos notícia de casos de conhecidos nossos que passaram por essa experiência, há sempre uma certa tensão ao ser parado à noite e ser abordado por um policial armado. Nossa médica teve de mostrar os documentos dela e do veículo, descer do carro e se dirigir a uma tenda para soprar o bafômetro. Procedeu com muita calma. Nós outros permanecemos no automóvel. Ela voltou em pouco tempo e se saiu perfeitamente bem, pois não havia ingerido bebida alcoólica. Seguimos viagem.
Carona especial, nos deixaram na garagem de nosso edifício, na porta do elevador. Poderia haver, para o velho casal, um fim de festa melhor?
Fomos nos deitar e dormimos muito bem.

Washington Luiz Bastos Conceição



Notas:
  1) O título desta crônica é um neologismo inspirado numa forma de expressão agora usada pelos meus filhos e seus amigos nas mensagens pelo WhatSapp, que consiste em derivar um verbo de um substantivo para indicar, resumidamente, uma ação específica. “Sextar”, por exemplo, pode significar algo como viver, aproveitar, a sexta-feira. Portanto, no dia 5 de outubro, digo que Leilah e eu “sabadamos”. Hoje, ao publicar esta crônica, "sabadei" de novo.
 2) Mais informações sobre a Marina da Glória poderão ser encontradas no site: https://marinadagloria.com.br/ .

sábado, 25 de maio de 2019

Reunião de Família na Franca do Imperador


O plano era antigo, de uns dois anos atrás. Jurema, minha filha, queria nos levar, a mim e Leilah, minha esposa, a Franca, para visitar meu irmão Luiz Antônio e a família do Túlio, meu irmão mais velho, já falecido. Luiz Antônio, bem mais moço do que eu, está, já há algum tempo, com grande dificuldade de locomoção causada por um sério problema nos quadris; usa cadeira de rodas. Da família do Túlio, tínhamos notícia, mas, com exceção da Márcia, filha dele, fazia muito tempo que não nos víamos.
Afinal, este ano, Jurema, embora esteja a todo vapor em seu trabalho, decidiu realizar a viagem recorrendo ao apoio da Márcia, que costuma estar em Franca entre uma viagem e outra ao exterior. Ela organizou o programa e Jurema providenciou nossa viagem do Rio para Franca, que seria de avião até Ribeirão Preto e, de automóvel, desta cidade até Franca. Sabedores do programa, o casal Roberto, meu cunhado, e Regina, prima da Leilah, que também queria ver os francanos, aderiu ao programa. Beto, filho do Roberto, se encarregou de acompanhá-los. Francisco, meu terceiro filho, que está fazendo um trabalho em São Paulo, também decidiu ir a Franca.

Franca é uma cidade situada no nordeste do Estado de São Paulo, cujo município faz divisa com Minas Gerais. A leste de Ribeirão Preto, dista 89 km desta importante cidade paulista (cerca de 900.000 habitantes) e se liga a ela por uma excelente rodovia. Fundada como freguesia da Vila Mogi Mirim em 1805, com o nome de “Nossa Senhora da Conceição da Franca”, foi elevada a vila em 1824, denominando-se “Vila Franca do Imperador”. Hoje, Franca é um importante centro urbano, econômico e industrial, com uma população estimada em mais de 350.000 habitantes, bastante conhecida por sua indústria de calçados e pelo destaque no basquete nacional.
Parte da família de Osmar e Jurema, meus pais, se estendeu para Franca. Como esses Bastos Conceição foram parar lá?

Tudo começou com o Túlio. Ele, aos 24 anos, era rapaz feito, trabalhava no IAPI desde os 14 anos, fazendo uma promissora carreira. Chegara ao cargo de agente substituto, ou seja, gerente de agência, temporário, substituindo agentes em férias ou licenciados em cidades do interior paulista. Esteve em várias delas, em algumas por muitos meses. Quando foi designado para a agência de Franca, conheceu Nenzinha, apelido de Maria Aparecida, namoraram e ficaram noivos. Quando se casaram, ele já estava trabalhando em outra cidade do interior do estado. Foram morar em São Paulo. Nasceram Eduardo e, depois, Márcia. Entretanto, como ele continuava trabalhando em cidades do interior, a vida do casal, com duas crianças, ficou difícil. Nessa ocasião, seu Antônio Rocha, pai da Nenzinha, ofereceu ao Túlio a oportunidade de se associar à sua empresa e trabalhar com ele em Franca. A Rochfer era, então, uma pequena indústria metalúrgica especializada em turbinas e bombas de uso rural. Excelente técnico em mecânica e muito criativo, inventor mesmo, Seu Antônio criou uma bomba de água que usava energia de uma roda d'água, ideal para fazendas e sítios que não dispunham de energia elétrica em locais remotos. Um produto de muita aceitação, com características técnicas que o tornavam altamente eficiente. Seu Antônio queria expandir sua empresa, mas preferia continuar com suas atividades técnicas, e chamou o Túlio para atuar nas áreas de administração e finanças da empresa. Este aceitou o convite, decidiu deixar o emprego público e enfrentar o desafio. Deu muito certo. A indústria se expandiu, passou de um terreno no centro da cidade, junto à casa do Seu Antônio, para um novo edifício construído especialmente para ela no distrito industrial da cidade de Franca. Consolidou-se, dando ótimos resultados financeiros, principalmente porque a bomba, seu principal produto, vendida em todo o País e também exportada, foi um grande sucesso. Aliás, continuamente aperfeiçoada, prossegue sendo um importante produto da empresa.
Em Franca, nasceu o terceiro filho do casal, Fernando.

Com o sucesso da Rochfer, Túlio pôde realizar um sonho de infância que era ter uma pequena fazenda. Começou com o que chamava de sítio, onde construiu inicialmente uma espécie de clube, com uma grande piscina, vestiários, salão de festas, salão de refeições, cozinha, despensa e dois apartamentos que usava enquanto projetava e construía sua casa definitiva na fazenda. Sua construção foi caprichada e, por isso, demorada, mas ficou como ele queria, bem grande e no estilo colonial norte-americano. Tinha um apartamento completo para o casal e várias pequenas suítes para os hóspedes. Resultou uma bela mansão.
O sítio evoluiu, mediante compra de terrenos vizinhos, para uma fazenda de produção de leite com criação refinada de gado leiteiro e instalações modernas para ordenha e tratamento do gado. Para administrar este desenvolvimento, Túlio chamou Luiz Antônio que, já casado e com filhos, morava em Goiânia, Goiás, e tinha se especializado em desenvolvimento e administração de fazendas. Daí a mudança dele e sua família para Franca. A fazenda se tornou um modelo do ramo de leite, participou de vários concursos e recebeu prêmios importantes – um deles foi um trator que o Luiz Antônio foi a São Paulo receber do governador do Estado.
Essa situação durou vários anos. Nós, os parentes, visitávamos Franca e a fazenda com frequência, especialmente nos feriados de final de ano e de carnaval. Foram reuniões inesquecíveis, marcadas pela atenção e generosidade dos anfitriões.
Esse quadro foi se modificando com o passar dos anos. Ocorreram os falecimentos de Osmar, de Seu Antônio e de D. Dina, sua esposa; Túlio, relativamente cedo, decidiu se aposentar, passando a administração da empresa aos filhos. Estes a conduziram com competência e, recentemente, passaram a administração aos filhos da Márcia e integram o conselho da empresa. A Rochfer se mantém firme e forte sob a administração da quarta geração, o que, como empresa familiar, é algo admirável.
A fazenda, depois do falecimento do Túlio, passou a ser pouco utilizada e, com a extraordinária expansão da cultura da cana na região, foi vendida para uma empresa canavieira.
Túlio faleceu em 2002. Jurema, minha mãe, que já sofrera, como todos da família, a perda prematura de minha irmã, Maria da Penha, mudou-se para Franca em 2003 e lá faleceu em 2007, aos 97 anos.

Leilah e eu nos preparamos para a viagem a Franca que, para mim, era uma aventura. Por que estou falando em aventura? Porque já não estamos, minha esposa e eu, em condições físicas para considerar uma viagem, especialmente viagem aérea, uma atividade normal. No planejamento geral, na compra das passagens, no acompanhamento durante a viagem, os filhos ajudam muito (senão não poderíamos sair de casa). Porém, na preparação final, as coisas que fazíamos sem problemas anos atrás ficam muito mais difíceis para nós, idosos. A definição do que teremos de levar (roupas, agasalhos, remédios mil, perfumaria, documentos, dinheiro, cartões de crédito, celulares e seus carregadores); a retirada das malas das prateleiras altas do armário e a acomodação da roupa, calçados e objetos na bagagem (“Será que não estamos esquecendo alguma coisa?”) são agora tarefas muito difíceis para nós.
O voo a Ribeirão Preto estava programado para as dez da manhã do dia três de maio. Nesse dia, levantamo-nos às seis horas da manhã, tomamos café, fechamos as malas, preparamos a casa para nossa ausência e chamamos e embarcamos em um carro da Uber. Chegamos ao aeroporto Santos Dumont e fizemos check-in. Jurema e Alexandre chegaram logo depois e nos acompanharam ao embarque. Leilah e eu passamos por uma revista especial; eu, por causa do marcapasso, e ela, porque estava usando cadeira de rodas, como costuma fazer em aeroportos. O encarregado da revista, além do procedimento normal, apalpou meu peito para verificar se eu tinha mesmo o aparelho (as carteiras de “marcapassista” e de identidade não foram suficientes). Concluí que há uma desconfiança de golpe de falsos implantados de marcapasso. Também tive de tirar o tênis para exame. Fui liberado.
Embarcamos no andar térreo e, por causa da cadeira de rodas da Leilah, fomos de van até o avião. Este era baixo, de modo que a escada de embarque tinha apenas seis degraus. Jurema, Alexandre e os funcionários da empresa aérea ajudaram os velhos a subir no avião e a se acomodarem nos assentos. Fizemos boa viagem.
Márcia estava nos esperando no aeroporto de Ribeirão e nos levou em seu automóvel até Franca. Alexandre e Jurema ficaram com amigos em Ribeirão e seguiriam para Franca no dia seguinte.
Leilah e eu chegamos ao hotel, fizemos o check-in e seguimos para a casa de Luiz Antônio e Inês, sua esposa. Roberto, Regina e Beto chegaram de São Paulo, também via Ribeirão, logo depois. Inês nos ofereceu um ótimo almoço. Iniciava-se uma bela temporada gastronômica.
A Márcia nos recebeu, no sábado, com uma feijoada para todos da família que estavam em Franca; no domingo, churrasco para o mesmo grupo; na segunda, para parte do grupo (os mais jovens ainda trabalham), almoço para acabar com a feijoada de sábado. Sempre com petiscos, acompanhamentos e bebidas variadas. Ainda na segunda à noite, Inês convidou o grupo para o lanche.
Na terça, dia da volta, Leilah e eu (dentre os visitantes, Francisco voltara a Atibaia, SP, no domingo, e os outros já tinham ido, na manhã da terça, a Ribeirão) decidimos matar saudades do Barão, restaurante aonde o Túlio costumava nos levar e do qual ele era frequentador especial tratado “à vela de libra”. O Barão conserva suas características tradicionais. Conseguimos falar com um gerente veterano que conheceu meu irmão, me apresentei e trocamos lembranças. Almoço muito agradável e comemos bem; o programa foi uma ótima ideia da Leilah. Voltamos ao hotel, fizemos o checkout e Eduardo e Márcia nos levaram ao aeroporto de Ribeirão, desta vez no carro dele. Chegamos com bastante antecedência e aguardamos Jurema e Alexandre, que tinham voltado a Ribeirão pela manhã. O voo da volta não foi tranquilo. Primeiro, atrasou; porque, segundo informaram após ter passado um bom tempo do horário de embarque, estava chovendo muito no Rio e o Santos Dumont estava fechado. Após uma longa espera, embarcamos; foi um voo noturno com alguma turbulência. Ao nos aproximarmos do Rio chovia bastante; o piloto teve de retardar o pouso (entendi que um avião que nos precedia teve de arremeter ao tentar pousar). Enfim, estava acontecendo tudo que podia impressionar um velho medroso. O pouso foi difícil, mas sem problemas. Bati palmas para o piloto, mas poucos passageiros me acompanharam – vários olharam para trás, admirados. Passei vergonha.
Chegamos em casa umas duas horas depois do previsto. Tudo em ordem, graças a Deus.

Foi, para mim, realmente uma aventura. E com final feliz. Uma reunião de que todos os participantes guardarão uma lembrança muito agradável. O almoço de sábado se destacou porque teve o maior quórum e foi o reencontro de muitos de nós, incluindo aqueles que moram próximos uns dos outros. A casa da Márcia se presta de forma excelente a esse tipo de reunião. Éramos mais de vinte pessoas, de quatro gerações: a minha, de meus filhos e sobrinhos, dos filhos destes e de seus pequenos netos. Contemplando o grupo, pensei: são todos descendentes de Osmar e Jurema e dos pais dos respectivos cônjuges de seus filhos. A certa altura do almoço tive vontade de fazer um discurso onde eu abordaria a construção da família, imaginando o prazer que os ancestrais teriam em apreciar aquela reunião. Não tive oportunidade, as pessoas estavam conversando animadamente abordando diferentes assuntos.

Quando, outro dia, me estimularam a escrever uma crônica sobre nosso memorável evento, aceitei o desafio. E, o que é especial, a estou publicando no dia do aniversário do Túlio.

Washington Luiz Bastos Conceição



Nota: IAPI é a abreviação de “Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários”.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

A Noite da Tempestade


Na noite de quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019, abateu-se sobre o Rio de Janeiro um dos mais violentos temporais de sua história.

Estávamos, Leilah e eu, assistindo, pela televisão, a uma dessas novas séries do Netflix, como vimos fazendo ultimamente – é uma boa distração. Eram nove horas da noite, mais ou menos. De repente, uma ventania, muito forte, me fez fechar os vidros das janelas da sala, o que faço deixando pequenas frestas, pelas quais o vento passou a assobiar intensamente. Em seguida, veio uma chuva pesada, intensa. Tornou-se um temporal que, de certa forma, era esperado, depois que tivemos um janeiro de muitos dias de calor fortíssimo e sem chuvas.
Continuamos a assistir ao nosso filme, temendo pelo corte de luz, o que aconteceu de forma muito rápida (poucos segundos) por umas três vezes.
Começamos a pensar nos filhos e cônjuges daqui do Rio. Leilah enviou mensagens pelo WhatsApp perguntando, para cada um, onde estavam, se já estavam em casa. Demorou um pouco, mas Adriana, uma das noras, deu notícias. Ela mora em São Conrado e trabalha no centro; usa automóvel para ir e vir, dando um tempo no meio do caminho para malhar na academia, enquanto o trânsito se acalma. Ela contou que estava indo pela Avenida Niemeyer (que liga o Leblon a São Conrado pela costa) mas teve de parar porque houve uma queda de barreira e a avenida foi interditada; e que conseguiu chegar ao Hotel Sheraton e estava abrigada lá aguardando os acontecimentos.
Luiz, meu filho mais velho, marido de Adriana, estava em casa e os da Urca, Francisco, o terceiro filho, Simone, sua esposa, e meu neto Bruno, também.
Jurema, minha filha, que está sempre atenta ao celular, não respondia à mensagem da Leilah. Tentamos o telefone da casa dela, que fica no bairro Fonte da Saudade, perto da Lagoa Rodrigo de Freitas; nada.
Dez minutos antes das onze horas, resolvi enviar à Jurema e Alexandre mensagem perguntando se estavam em casa – nenhuma resposta. Comecei uma conversa particular com Deus.
Leilah e eu redobramos a atenção para as mensagens do WhatSapp e, mesmo sabendo que seria pouco provável que alguém fizesse alguma comunicação por e-mail naquelas circunstâncias, eu consultava também o e-mail no celular.

Às onze e vinte recebo uma mensagem, no grupo de nosso almoço de colegas ex-IBMistas, de um amigo que mora em Maringá, Paraná, perguntando: “Alguém aí ficou preso na chuva? A coisa foi feia!”. Outro do grupo (pouco mais moço do que eu), que mora em São Conrado, respondeu uns dez minutos depois: “Eu peguei o grosso da chuva indo para um supermercado na Barra... Dei meia volta antes de ingressar na Lagoa-Barra e voltei para casa, sem visibilidade, dirigindo a 10 km/h com o pisca-alerta ligado como alguns outros poucos carros, tanto à frente como atrás. Mas consegui chegar em casa com uma certa apreensão. O próximo desafio foi ter coragem de pegar elevador com medo de ficar preso, pois antes mesmo de sair de casa a força já havia caído umas duas ou três vezes. Mas eu pensava que era apenas o vento!”. As outras respostas do grupo viriam de manhã.
Sem a resposta de Jurema e Alexandre, o velho casal não conseguia dormir. Leilah continuou lendo e eu, sem poder me concentrar em leitura ou escrita, fui jogar “freecell” no computador para aliviar a cabeça. Até quando o celular, à uma hora e três minutos, anunciou uma mensagem – era de Jurema, que dizia: “Estamos bem. Acabamos de chegar em casa. Ajudamos pessoas na rua. Fomos correr sem celulares.” Alexandre também respondeu, por via das dúvidas. Depois, fiquei sabendo dos detalhes: eles saíram para correr em volta da Lagoa Rodrigo de Freitas (por isso não levaram o celular) e depois foram fazer um lanche no novo bar do Chico, no Humaitá. Eles conhecem o Chico desde que ele era garçom no Bracarense (botequim famoso do Rio) e foram prestigiar seu novo empreendimento. De repente, chegou o vendaval, que derrubou uma árvore sobre um automóvel em frente ao bar, e, a seguir, o temporal. Abrigados, aguardaram a chuva passar. Decidiram voltar para casa, embora o bairro estivesse totalmente às escuras. No caminho de volta, pararam para ajudar um taxista que estava tentando trocar um pneu no escuro. Sem a lanterna do celular, Jurema parou um automóvel particular, cujo motorista concordou em ajudar com a iluminação dos faróis. Finalmente, o casal voltou para casa e respondeu nossa mensagem.
Leilah se preparou para dormir e eu, antes de ir para a cama, tomei um “cowboy” (dose de uísque sem gelo) porque não sou de ferro. Só consegui pegar no sono depois das duas horas da manhã.


No dia seguinte, recebi no grupo de WhatsApp os relatos dos amigos do almoço. A ventania (mais de 100km por hora em Copacabana) assustou e perturbou dois deles. Uma das duas senhoras do grupo, que mora em um edifício muito alto no Leblon, escreveu: “Imaginem eu nessa torre sem nada à volta pra diminuir o vento ... Pensei que as janelas fossem estourar em cima de mim ...” e “Não foi uma chuva simplesmente. Foi um toró como há tempos não havia.” Outro, que mora em Botafogo, numa cobertura, contou que teve de “endireitar vasos de 50kg de plantas no terraço até 01:30. Foi emocionante, de calção, naquela ventania. O terraço fica no 25º. Andar.”
Um dos colegas (octogenário, como eu), contudo, passou uma noite terrível. Ele mora no Leblon e voltava para casa, de automóvel, com o filho, quando desabou o temporal. Seguiram as instruções do Waze, que mandou entrar numa rua que estava alagada, mas dando passagem. De repente uma onda, provocada por outro carro que os ultrapassou, cobriu o capô e o carro morreu. Refugiaram-se na marquise de um prédio próximo e começaram “a odisseia de conseguir socorro” da seguradora. Não sei se deram um jeito de descansar, mas às sete e meia da manhã o reboque ainda não tinha chegado. Às oito e quarenta e seis ele nos enviou uma fotografia do carro sobre o reboque com a legenda “Chegando em casa agora... Obrigado pela atenção”.
Um dos amigos, entretanto, dormiu tranquilo e, na manhã seguinte, comentou: “Santa inocência, nem percebi que houve algo, além da chuva! Só agora vi o jornal e tomei conhecimento!!!”


Na manhã de quinta-feira, tivemos mais notícias da Adriana. Ela dormiu no hotel. Às oito e meia da manhã da quinta-feira, enviou uma mensagem de voz dizendo que não contou detalhes, antes, para que não ficássemos preocupados: “O hotel ficou sem energia e meu celular vai descarregar daqui a pouco, mas estou bem. As coisas estão complicadas, acho que só saio daqui de helicóptero.” Ela voltou para casa no meio da tarde.

Logo cedo, liguei a televisão e me inteirei das notícias: alagamentos e muitas árvores, algumas enormes, arrancadas, em toda a cidade; deslizamento em Guaratiba, com duas vítimas fatais; inundação na Rocinha, com uma vítima fatal, e, principalmente, o deslizamento no Vidigal que atingiu a avenida Niemeyer, soterrou um ônibus, matando duas pessoas. Para completar o desastre, a ciclovia, recém reforçada para resistir às ondas violentas das ressacas, também teve um trecho demolido pela avalanche do Vidigal. Enfim, uma grande tragédia. Acompanhei as notícias, consternado.



Analisando o ocorrido com a família e os amigos, o susto maior parece-me ter sido o da Adriana. No sábado, pedi a ela que me desse mais detalhes sobre o ocorrido; ela fez um depoimento impressionante, dramático mesmo. Transcrevo, a seguir, parte dele:
Deviam ser umas nove e quarenta da noite, no máximo. Eu estava, de automóvel, entrando na Avenida Niemeyer, vindo do Rio Sul (shopping center), da academia de ginástica. No Leblon, estava chovendo muito pouco, tanto que o carro estava com o limpador de para-brisa ligado apenas no temporizador. Quando entrei na Niemeyer, começou a chover forte, muito forte. O Luizão (meu filho mais velho, marido dela) me ligou e falou para eu retornar, mas eu já tinha passado do Mirante do Leblon. Respondi que estava muito perto do Sheraton (hotel), e que, se não desse para continuar, pararia lá. Bem perto do hotel, o carro na minha frente resolveu voltar; ele conseguiu manobrar em frente à garagem de serviço do hotel. Os carros que estavam na minha frente se distanciaram um pouco, fiquei então com um vazio na minha frente e vi começar a deslizarem coisas da encosta. Acelerei. Estavam caindo terra e plantas; uma super-bananeira caiu no meu para-brisa e tapou minha visão. Consegui entrar no pátio do Sheraton. Não dava para ficar naquele estacionamento aberto, então dirigi até debaixo da marquise na entrada do hotel.” ... “Fiquei um pouquinho dentro do carro, mas ele estava balançando demais com o vento, que estava muito forte, fazendo redemoinhos na água. Decidi sair do carro, mas não tive força para abrir a porta do meu lado; sentei no banco do carona, e consegui sair do outro lado. Bati na porta do hotel e me deixaram entrar. Eu estava tremendo muito, com muito medo; me abriguei no lobby. Uns cinco minutos depois, chegou um rapaz, bem alto e forte, dizendo que estava no ônibus, tinha quebrado o vidro para sair, andou com água à altura dos joelhos, e que havia mais pessoas no ônibus e precisavam de ajuda. Estava ventando muito, chovendo muito. Ligaram para o Corpo de Bombeiros, pedindo socorro para o ônibus.”

A seguir (agora, estou resumindo) ela contou que entraram no saguão do hotel outras pessoas que estavam fora em seus automóveis e o motorista do ônibus que estava atrás do ônibus soterrado, dizendo que os passageiros dele estavam bem. Depois, chegou, em estado de choque, o motorista do ônibus atingido pelo deslizamento contando que havia dois passageiros mortos dentro do seu ônibus. O pessoal do hotel e alguns turistas foram ajudar os passageiros a sair do ônibus. Quando os passageiros chegaram, com a roupa molhada, alguns sujos de terra, receberam toalhas do pessoal do hotel e a atenção de todos que estavam no saguão.
Adriana passou a noite no hotel que, em condições extremamente difíceis, abrigou muito bem os “refugiados”, conseguindo quartos para dormirem e providenciando lanches, mesmo sem energia elétrica – o gerador do hotel foi inutilizado pela inundação.
No dia seguinte, o hotel serviu o café da manhã e, cerca de uma hora da tarde, um almoço improvisado – carne (descongelada) assada na brasa. Lá pelas duas horas, os gerentes do Sheraton iniciaram a evacuação do hotel, que não tinha a menor condição de funcionar, transferindo os hóspedes para outros hotéis. Os “refugiados” que estavam de automóvel foram os primeiros a poder sair, mas apenas no sentido de São Conrado, dando carona a outros que se abrigaram no hotel. Adriana dirigiu seu automóvel, escoltada por um carro da Defesa Civil que “abria o caminho” para ela em uma Niemeyer totalmente caótica, que ela chamou de “campo de guerra”, com barreiras e árvores caídas pelo caminho. Enviou-nos vídeos e fotos dessa jornada.
Chegou em casa cansada e muito abalada, mas, em seu relato, destacou que, em meio a toda aquela tristeza, se revelou a solidariedade das pessoas, seu comportamento humanitário, e a competência e atenção do pessoal do hotel, que elogiou muito.

Em sua primeira mensagem, Adriana, mencionando o que aconteceu com o ônibus, usou a expressão “por pouco não sou eu (a vítima)”. No meu tempo, se diria: “Adriana nasceu de novo”.

Washington Luiz Bastos Conceição