Estou transcrevendo hoje, do “Histórias
do Terceiro Tempo”, uma das histórias que me levaram à aventura de escrever. Como
digo na apresentação desse meu livro, o primeiro, elas estavam na minha cabeça
havia vários anos e eu vinha prometendo a meus amigos e minha família escrevê-las
um dia.
Para mim, a “Corrida de Caminhão” se
tornou simbólica. Cheguei até a contá-la na comemoração dos meus setenta anos,
seis anos antes de publicar o livro.
Washington Luiz Bastos Conceição
Pereira Barreto - Corrida de Caminhão
Manhã fria, oito horas, o mercedinho
corria por uma estrada plana, de terra. O motorista dava o que podia, pois
muitos outros caminhões – maiores, menores, mais velhos, mais novos – também
corriam e pela mesma razão. A paisagem era de campo, capim rasteiro, meio
queimado, poluída pela fumaça negra dos fornos rudimentares das olarias. Era
uma corrida de caminhões em Aparecida do Taboado, então uma pequena cidade de
Mato Grosso. Do outro lado do rio Paraná, para quem vai de São Paulo. A corrida
era atrás de tijolos.
O que eu, um engenheiro garoto de 26
anos, estava fazendo na boleia de um caminhão, num lugar que não conhecia e
aonde não voltaria mais?
Nós, os engenheiros da SENA, vínhamos
fazendo vários serviços em Pereira Barreto, desde o projeto da rede de água até
a construção de edifícios públicos: o Ginásio, o Posto de Saúde e outros.
Praticamente nos estabelecemos lá, trabalhando também em cidades próximas. Os
projetos e obras eram contratados pelo Estado mas a Prefeitura acompanhava de
perto, pois o interesse maior era da cidade. O município tinha 5000 habitantes
naquela época, na grande maioria colonos japoneses e seus descendentes.
Tornamo-nos, o Gilberto, o Gaia e eu,
os “engenheiros locais”, muito prestigiados, relacionando-nos com as pessoas de
destaque da cidade, especialmente o prefeito, Sr. Antônio Gomes da Silva,
o presidente da Câmara Municipal, o
juiz, o gerente do Banco do Brasil, os médicos e os principais comerciantes.
Revezávamo-nos nas viagens de S. Paulo
a Pereira – parte de trem, parte de jardineira, como eles chamavam os ônibus
intermunicipais da região. A impressão que tenho é de que viajávamos uns 800 quilômetros;
hoje, a distância de São Paulo, informada pela Prefeitura, é de 621 quilômetros.
Tenho lembranças marcantes de Pereira
Barreto:
- o primeiro trabalho, de levantamento
topográfico para o projeto da rede de água, semelhante ao que fizéramos em
Flórida Paulista, trabalho de sol a sol que, algumas vezes, era encerrado com
uma boa caipirinha em companhia dos peões;
- o casamento do Gaia, que lá conheceu
a Lelinha, ao qual compareceram todos os sócios, até o Chicão que habitualmente
não viajava para lá;
- o acompanhamento pelo rádio, em
1958, na república em que nos hospedávamos – que foi uma boa solução encontrada
pelo Gilberto, pois o hotel deixava muito a desejar – da final Brasil versus
Suécia da Copa do Mundo e a comemoração da conquista da primeira copa mundial
pela nossa seleção;
- e, como algo diferente, a Corrida de
Caminhão, que comecei a narrar acima e continuo agora.
Na viagem em que aconteceu esta
história, ao chegar a Pereira, encontrei a construção do colégio, um bom
edifício de projeto padrão daquele tempo, em vias de se atrasar porque tijolos
estavam em falta em toda a região. Era uma época de muita construção no
interior, os fornecedores habituais não podiam nos atender no prazo necessário
e a situação exigia ação de emergência. Como o prefeito também estava
precisando de tijolos para suas próprias obras, combinamos fazer a compra em
parceria – ele entrava com o caminhão e o motorista e eu faria a compra no Mato
Grosso (hoje Mato Grosso do Sul) e dividiríamos a carga e as despesas.
Trato feito, madruguei no dia
seguinte, um sábado, para enfrentar a viagem. A cabine do caminhão, em matéria
de conforto, não era nada parecida com as de hoje (que têm rádio e ar
condicionado) e a estrada, de terra, como a maioria das estradas daquele tempo,
era uma estrada secundária com traçado rudimentar, curvas fechadas, rampas
inclinadas e cruzava córregos sem pontes. A viagem até Porto Taboado, no Rio
Paraná, do lado do Estado de São Paulo, foi apenas o início da aventura, levou
umas duas horas. A seguir, depois de enfrentar uma fila razoável, fizemos a
travessia de balsa. Nada parecido com a balsa que se usava naquele tempo para
atravessar de Santos ao Guarujá. Era uma balsa pequena, rudimentar. O embarque
e o desembarque de caminhões, por rampas íngremes, eram operações difíceis e
até arriscadas. Mas Deus nos ajudou e cruzamos o Paraná sem problemas. Após
subirmos na outra margem, pedimos as direções para as olarias e entramos na
corrida de caminhão.
Não sei se algum dos caminhões ganhou
o prêmio e conseguiu os tijolos. Vários competidores, como nós, não arranjaram
tijolo algum. Imaginaram a minha situação, voltar para Pereira Barreto sem os
tijolos, depois de tanta aventura?
Não me conformei e comecei a perguntar
onde teria alguma chance – outras olarias, mesmo que tivesse de ir adiante. Fui
à cidade e alguém me deu uma dica: o padre tinha comprado uma carga grande de
tijolos mas ainda não tinha começado a obra. Talvez ele revendesse para mim.
Consegui falar com o padre, negociamos e fiz a compra. O preço foi razoável,
certamente mais caro do que em condições normais, mas valia a pena.
Como em toda aquela região, as olarias
de lá produziam tijolos “pó-de-mico”
excelentes, resistentes, de forma que podiam ser descarregados a granel, como
pedra, nem precisavam ser empilhados. A pilha de tijolos estava ao lado da
igreja. Carregamos o caminhão, foi feita a nota de venda mas, então, surgiu a
complicação: o fiscal da receita do Estado teria de emitir o documento de
autorização para a saída da mercadoria do Estado do Mato Grosso – e, lembremos,
era sábado e hora do almoço!
Bem, eu tinha de achar o fiscal e
conseguir o documento, pois não estava nos meus planos passar o fim de semana
na cidade e a obra estava esperando. Dei sorte de novo e me disseram – cidade pequena
é ótima para essas coisas – que àquela hora o fiscal costumava beber uma
cerveja na zona do meretrício. Fomos de caminhão, já carregado, para lá. Nada
de mais, de dia os bares funcionavam como bares comuns, onde o pessoal da
cidade se reunia para beber cerveja e jogar conversa fora. Achei o homem, ele
me atendeu muito bem, deu a autorização e, não tenho certeza, mas acho que
tomei um copo de cerveja com ele. Àquela hora, o dia estava ensolarado e quente
e uma cervejinha caía muito bem.
A viagem de volta não apresentou
surpresas – a balsa outra vez e a mesma estrada. Chegamos a Pereira Barreto no
fim da tarde e com a sensação de ter atingido plenamente o objetivo.
Mas, durante todos estes anos (mais de
cinquenta!) penso no irônico da história: comprei os tijolos do padre e
consegui a documentação da compra na zona do meretrício.
Washington Luiz Bastos Conceição
Rio de Janeiro, janeiro de 2009