quarta-feira, 25 de abril de 2012

O Sabor da Erva Mate

Cara leitora ou prezado leitor:
Tenho a satisfação de publicar hoje o trabalho de uma cronista convidada. Isa de Oliveira Siefert é minha prima, filha do irmão mais velho de minha mãe e tem minha idade. Quando leu meu “Histórias do Terceiro Tempo”, comentou que, diferente do que escrevi, o negócio de nosso avô José de Oliveira em Fernandes Pinheiro era erva mate e não serraria; quem tinha serraria era nosso Tio Lascínio Carnasciali, meu padrinho.
Há alguns anos, li um trabalho da Isa sobre Fernandes Pinheiro, resultado de uma pesquisa que ela fez sobre a família. Recentemente, eu estava na caixa do Supermercado Zona Sul, no Leblon, e observei que uma senhora na minha frente estava comprando uma dúzia de garrafas de Matte Leão, daquelas de litro e meio. Pensei: “Caramba, a mulher vai dar uma festa na base de chá!” – e me lembrei da história da Isa sobre o mate em Fernandes Pinheiro. Resolvi, então, pedir a ela que me mandasse seu texto para publicar neste blog, pois o achei ilustrativo e a bebida é muito conhecida no Brasil, há muito tempo. De tal forma que seu “slogan” de propaganda “já vem queimado” era usado para caracterizar pessoas explosivas, mal humoradas.
Isa atendeu gentilmente meu pedido e agora tenho o prazer de oferecer a crônica a você.


O SABOR DA ERVA MATE
José Antonio de Oliveira era seu nome. Meu avô. Mas não o conheci: morreu dez anos antes que eu nascesse. Lembro a primeira vez que ouvi falar nesse avô: minha mãe arrumava as gavetas da cômoda de seu quarto, e numa delas vi um objeto estranho; uma caixinha redonda de prata lavrada e perguntei o que era. É o relógio de seu avô José, respondeu minha mãe. Ah, mas aquele não tinha a mais remota semelhança com os relógios que eu conhecia. Minha mãe, sábia como todas as mães do mundo, me mostrou: havia uma mola quase invisível que, pressionada, levantava a tampa e lá estavam então, números e ponteiros que uma criança de quatro anos já reconhecia como um relógio.
Desfeito esse mistério, mas não o seu fascínio – esse relógio foi um fetiche em toda a minha infância – passei a me ocupar de outra novidade: de um novo avô do qual eu não lembrava de ter ouvido falar.
Era o pai de meu pai, disse Mamãe, e mostrou-me uma fotografia numa carteira de identidade: um homem sisudo, de barba longa, cuja história agora, mais de meio século depois, estou tentando reconstituir.
Mas não foi o relógio, que é uma máquina do tempo, nem foi a foto, testemunha desse tempo, que me levaram por esses caminhos do passado.
Foi mesmo por uma estrada de asfalto, a bordo de um ônibus com todos os requisitos do conforto moderno, que desembarquei em Fernandes Pinheiro, a mítica cidadezinha onde meus avós, meu pai e meus tios viveram uma história de trabalho, de sacrifício, de realizações e de alegria, uma saga de pioneirismo que merecia ser bem contada.
A natureza me esperou com um cenário adequado: havia um nevoeiro difuso, que fazia que os muitos galpões da fazenda de erva-mate onde descemos, parecessem sombras imprecisas de um desenho surrealista. Assim foi mais fácil para mim, povoar aquelas paisagens com aquela gente valente, que eu trazia comigo na memória, no coração e no sangue.
Pois aquelas terras, hoje a fazenda sede da moderna e pujante indústria do “Matte Leão”, tiveram suas primeiras picadas abertas a golpes de facão, por esse avô que não conheci.
Ah, mas ele escondia bem atrás daquela expressão sisuda o seu espírito aventureiro; porque largou tudo de repente, o conforto da cidade, o aconchego de sua casa, parte de sua família e, carregando mulher e filhos, embrenhou-se por esse sertão afora, comprou uma imensidão de terras e começou do marco zero uma história nova de vida.
Chamava-se Imbituvinha o lugar nessa época, e era uma a paisagem quase infinita de pinheiros e erva mate, uma floresta nativa intocada, esperando que alguém com sede de liberdade e aventura desvendasse seus segredos. E esse grupinho reduzido iniciou ali uma vida primitiva, mas com direito a espantos e maravilhas ao raiar de cada manhã.
A golpes de facão, a vontade poderosa de meu avô foi descobrindo as fontes de água e as muitas espécies de plantas e bichos da região. Escolheu uma clareira para edificar sua casa, não muito longe da barroca onde havia uma fonte de água cristalina.
Naturalmente com a ajuda de peões, começou a explorar comercialmente a erva mate, a construir galpões, os barbaquás, onde se fazia a secagem e seleção das folhas. Tudo isso se fazia na pura intuição do produtor e ele conseguia um produto de muito boa qualidade. Como dá para perceber aí está o embrião primevo da história de sucesso do Matte Leão.
Vendo tão grandes desafios e oportunidades à sua frente chamou seu genro, que vivia em Curitiba, para participar daquela conquista.
Assim, meu tio Juca, José Borges de Macedo Jr. foi também para lá: levou juventude e idéias novas e fez sociedade com o primeiro “Leão que habitou essas matas”...
Não sei o primeiro nome desse pioneiro mas sei que, como meu tio, comercializando madeira, fez nome e fortuna nos idos do princípio do século passado.
Tio Juca construiu então uma casa de sonho: nós a vimos agora; ainda um monumento impressionante, que merece ser restaurado. Era a única casa de tijolos de toda a região: uma beleza, uma arquitetura de linhas puras e por dentro o conforto e o bom gosto de móveis e adornos do mais fino lavor. Lá estava ela, a linda casa de fazenda num fim de mundo, (ou seria o começo?) mas de frente para o meio de transporte e comunicação mais eficiente da época: os trilhos da estrada de ferro.
Outro tio meu, Lascínio Carnasciali, também genro do meu avô, mudou-se para lá e instalou uma fábrica de caixas, em aproveitamento inteligente das madeiras menos qualificadas da serraria.
Com maquinaria toda importada, o que havia de mais moderno na época, a serraria funcionava a pleno vapor, produzindo caixas de tamanhos diversos, reforçadas por barras transversais, onde viajavam as mercadorias de trem ou navio, dentro e fora do país. Mas numa madrugada de desespero meus tios acordaram com estrondos e estalos medonhos e viram a serraria explodir em chamas e seus sonhos virarem fumaça negra, dispersa pelos ventos. Não tiveram forças para prosseguir naquela terra que lhes parecera a terra da promissão. Desiludidos voltaram para Curitiba, deixando dois filhos e muitos sonhos enterrados lá.
E a história continuou: as mulheres cumprindo seus deveres, entre os quais, povoar o mundo parecia ser o mais importante: a cada um ou dois anos, no máximo, uma nova vida se acrescentava à vida. Mas as febres foram também cobrando seu preço: muitos bebês que lá nasceram, tios e primos meus, morreram na primeira infância. E, nessas noites e dias de aflição e tempestades, quando o vento rugia lá fora, queimava-se palma benta nos braseiros e acendiam-se velas nos oratórios. Naqueles oratórios onde nunca faltava, num copo de água e azeite, uma lamparina acesa, chama votiva queimando indefinidamente e que falava de crenças, de esperanças e de medos ancestrais...
Não sei dizer quando Imbituvinha passou a se chamar Fernandes Pinheiro que doou seu nome a essa cidade dadivosa. Sei que a vida continuou ali, e como não é estática, muitas mudanças foram acontecendo.
Em 1.922 meu avô morreu e seus filhos varões que eram cinco, não quiseram continuar na terra.
Em busca de estudos, de ilusões, de outras esperanças ou ”por causa do veneno das mulheres da cidade”... Quem sabe? Foram deixando um a um Fernandes Pinheiro.
Gradualmente nossas terras foram sendo vendidas, quase tudo para a família Leão.
Meu pai, o mais velho dos filhos homens, construiu uma história de sucesso, ainda ligada à erva mate. Tornou-se exportador para a Argentina e Uruguai, e fazia suas viagens a bordo de belos navios europeus, que iam de Santos a Buenos Aires em poucos dias.
Aquela vida cosmopolita da capital argentina, a Paris sul-americana, o encantava: suas lojas, seus cabarés, seus restaurantes, a elegância das mulheres, a finesse dos homens. E trouxe tantas coisas lindas de lá: roupas finas e chapéus, brinquedos, enfeites de Natal que faziam nossa árvore parecer um sonho e a música portenha, chorosa, emocional que vibrava no gramofone de nossa casa ou na voz rouca de minha mãe, e que tornou o Espanhol meu segundo idioma.
Mas essa história de meu pai também naufragou. Literalmente... porque foi numa enchente do Rio Iguaçu que as águas invadiram os galpões em São Mateus do Sul, onde ele armazenava a erva que seria embarcada em poucos dias para a Argentina. Perdeu-se tudo de roldão. Por algum tempo ainda pareceu possível retomar as coisas. Mas não... Foram vendendo propriedades, se desfazendo de joias e outros valores. Pois é: foi a nossa vez de tomar o mate amargo...
Do clã de meu pai, esse foi o epílogo de nossa ligação com a erva mate. Do clã de tio Juca, essa ligação se estendeu por algum tempo mais.
De todos os seus filhos, creio que só o Juquinha viveu em Fernandes Pinheiro toda a sua vida; os outros fizeram sua opção por cidades maiores. Uma das suas filhas, Celina, viúva de Gerônimo Molli, um uruguaio também ligado ao setor, manteve até a década de 1.970 um engenho de erva mate na Rua João Negrão, em Curitiba, em frente ao antigo engenho do Matte Leão.
Depois disso, creio que nada mais restou: a erva mate havia se despedido de nossas vidas... mas deixou o seu sabor em nossa alma. Se assim não fosse, eu não teria pisado com tanta reverência aquele chão.
E quando se abriu o nevoeiro, desvendando aquela vastidão verde, a erva mate plantada e podada com requintes de tecnologia, as sementeiras, os viveiros recebendo gradualmente a força do sol, eu chamei meus fantasmas, não para exorcizá-los, mas para fazê-los comungar daquela realização, porque sem eles, sem seu sacrifício, sem seus sonhos e sem seu ideal, nada disso teria acontecido.
É como disse Ricardo Guiraldes, escritor argentino:
“Há uma semente primeira e se em seu desenvolvimento intervém forças exteriores, o princípio vital da árvore é o mesmo da semente”...
Isa De Oliveira Siefert.
 

terça-feira, 17 de abril de 2012

Almoço às Quintas

Almoços e jantares são muito usados para comemorações e reuniões com amigos e colegas de trabalho. Variações, como, por exemplo, tomar um chopinho em um bar ou botequim, servem para bate-papo informal após o trabalho, bem como para  correligionários festejarem vitórias no futebol dos clubes do coração.
Meus filhos, todos adultos, costumam se reunir com amigos do tempo de escola, com colegas de trabalho e cotorcedores do Mengão. Há algumas reuniões com data prefixada; uma delas,  um chopp anual de um deles com colegas da Escola Americana, era motivo de conflito em casa porque a data era 24 de dezembro (depois de muitos anos, mudaram a data, graças a Deus!).

Muitos de nós, os mais velhos, aposentados ou não, sentimos necessidade de participar de reuniões e rever ex-colegas e amigos. A motivação para esses encontros, me parece, é uma necessidade que temos de trocar ideias, saber como estão os conhecidos, o que estão fazendo ou, simplesmente, de “jogar conversa fora”.
Quando ainda estava em atividades de consultoria junto a clientes, fui convidado por um ex-colega da IBM, grande amigo desde que entramos, juntos, na Empresa, a participar de um almoço semanal de ex-colegas. Como era realizado na Barra da Tijuca, em dia útil, não pude comparecer. Depois de algum tempo, o local do almoço passou a ser o complexo Leblon-Ipanema e eu, já aposentado, juntei-me ao grupo e agora participo dele com frequência, com muito prazer.
O almoço é realizado cada quinze dias, às quintas feiras (excepcionalmente, às sextas). A lista geral de participantes é, atualmente, de quinze colegas, mas o comparecimento médio é de cerca de oito, variando de 6 a 10 comensais. As ausências são causadas por motivos vários, que incluem viagens, visitas a filhos que moram no exterior e consultas médicas; em alguns casos raros, até por impedimentos de trabalho.
São todos maiores de 60 anos (há duas mulheres que baixam o limite inferior) e vários passaram dos 70. Eu, hoje com 79, devo ser o terceiro de cima para baixo. Felizmente, estamos, aparentemente, com a cabeça funcionando bem, embora as dificuldades físicas causadas pela idade afetem vários de nós.
Eu, ao encontrá-los, rememoro nosso relacionamento de trabalho. Como trabalhávamos na divisão de Marketing (que na IBM significa Vendas) de sistemas de Informática, tive com a maioria deles, ao longo de meus 24 anos de casa, algum contato de trabalho, fizemos alguma coisa juntos. Dois deles, por exemplo, foram de minha turma na IBM, ou seja, entramos juntos na Empresa, o que quer dizer que fomos companheiros de curso por seis meses, para começar. Outro foi meu contemporâneo na filial de São Paulo e fizemos um bom trabalho de cooperação gerencial; mais tarde, promovido para a Matriz no Rio, ele foi o gerente funcional de minha designação para o Projeto 3.7 em Chicago; quando voltei ao Brasil, fui promovido para uma das gerências de seu Departamento. Com os demais, tive atividades diversas, ligadas a atendimento a clientes, treinamento e projetos especiais. Digno de nota é ter entre eles três companheiros das peladas de futebol do clube Caxinguelê, que comento no “Histórias do Terceiro Tempo”, meu primeiro livro.
Bem, guardo essas lembranças para mim mesmo, pois nossa conversa raramente se torna uma “hora da saudade” – apenas, de vez em quando, comentamos alguns fatos pitorescos marcantes.
Então, sobre o que conversamos? Os assuntos vão desde as notícias da China, de seu desenvolvimento econômico, e da crise econômica mundial, até as novidades da tecnologia de informação e de comunicação, quando, frequentemente, um dos colegas é consultado, pois trabalha dando suporte a clientes de microcomputadores. Este assunto revela algumas preferências, como o caso de um deles que tem em seu computador 2 terabytes (mais de 2000 gigabytes) de memória de discos, onde mantém uma enorme biblioteca de filmes. Embora evitemos falar de política nacional, talvez por ser um assunto desagradável e polêmico que poderia estragar a reunião, comentamos as reclamações que temos como consumidores e contribuintes. Aliás, há no grupo um especialista em enviar correspondência a jornais e a autoridades sobre maus serviços e descasos que afetam o cidadão comum em nosso País.
Sempre discutimos os restaurantes que vimos utilizando. Surgem, então, controvérsias, pois alguns são mais exigentes com a comida e a bebida; outros, com a localização; terceiros, com a acomodação do grupo que permita uma comunicação integrada e evite conversas em separado, o que se consegue com uma mesa redonda ou quadrada e é quase impossível quando a mesa é em linha. Agora, resolvemos dar nota a cada restaurante. Como somos, na maioria, engenheiros temperados com a cultura IBM, parece-me que, logo, passaremos a usar uma das técnicas de avaliação que aprendemos no trabalho.

Para finalizar, transcrevo abaixo parte da carta de Natal que encaminhei aos companheiros do almoço às quintas, pois penso que ela traduz bem o que sinto em relação a essas reuniões.
“Desejo a vocês uma feliz comemoração no Natal e no fim do ano. E espero fervorosamente que, apesar das nuvens perturbadoras que mancham nosso céu, aqui e no resto do mundo, 2012 seja um bom ano para todos nós.
Em particular, quero que continuemos nos encontrando nos almoços, reuniões agradáveis porque - sinto - têm características muito interessantes. A primeira: não somos um bando de veteranos de guerra comentando apenas fatos do passado; os assuntos são atuais, embora incluam tópicos realistas sobre nossa condição de idosos. A segunda: buscamos bons locais e almoçamos bem. A terceira e, certamente, a mais importante, é que, livres dos objetivos e do organograma da Empresa onde convivemos por tanto tempo, passamos a ser mais amigos que simplesmente colegas.”
Washington Luiz Bastos Conceição