terça-feira, 19 de maio de 2015

“Home Care”

Mais uma vez, relato uma experiência pessoal com o intuito de informar os leitores e de provocar comentários daqueles que tenham vivido situação semelhante.



Meu conhecimento da modalidade de atendimento hospitalar (ou semi-hospitalar) em domicílio era, até o mês passado, restrito a um caso muito triste de uma tia que ficou em “home care” por dois anos, em coma, após um segundo acidente vascular cerebral, muito forte. O que eu sabia da operação do sistema era apenas que havia atendimento de enfermagem 24 horas por dia em um quarto com cama hospitalar e que meu tio contratou adicionalmente uma pessoa para acompanhar, de sua parte, os procedimentos diários.
O “home care” pós-operatório da Leilah teve, felizmente, características muito diferentes por se tratar de um tratamento específico mediante infusões intravenosas de antibióticos e soro.
Embora seja um tratamento relativamente simples, surpreendeu-me a complexidade da operação – fácil de planejar, porém muito difícil de executar.
Em minha crônica “É Proibido Cair!” conto a história das fraturas da Leilah, publicada na fase de recuperação da segunda cirurgia de quadril. Ela vinha melhorando, parecia que ia ficar boa logo. Infelizmente, após um período de melhora de seis meses, dores muito fortes na perna a impediram de voltar a andar normalmente, de tal forma que, após uma fase em que chegou a caminhar na rua apenas de bengala, voltou ao andador. Radiografias, tomografias computadorizadas, ressonâncias magnéticas e até um exame menos usual, a eletroneuromiografia, deram resultados bons, ou seja, não indicaram anormalidades. O ortopedista que a operou concluiu que ela necessitava apenas de exercícios, fisioterapia específica, pois  as dores eram musculares e ela ficara muito tempo sem andar. Leilah fez a fisioterapia com afinco e com gosto, mas, após cada sessão, as dores se tornavam mais agudas e ela se arrastava ao caminhar. Sofria bastante.
Em resumo, dois anos e três meses após a operação, durante os quais fizemos tentativas variadas de tratamento, procuramos o ortopedista que tratara da Leilah em 2009; cuidou de sua recuperação quando ela voltou ao Brasil, após cirurgia de fratura no quadril direito realizada nos Estados Unidos.
O médico verificou que, no caso atual da fratura no quadril esquerdo, a prótese estava solta, decorrente de uma infecção entre o osso e a prótese. A solução seria nova cirurgia, desta vez para substituir a prótese. Operação dupla, portanto. Horas de trabalho numa paciente de 79 anos. Esta, com o apoio da família, decidiu se operar novamente, pois, além de sofrer dores e depender o tempo todo de analgésicos fortes, a perspectiva era de piora, até de ficar imobilizada numa cadeira de rodas; o que, absolutamente, não seria aceitável por Dona Leilah.
A cirurgia foi realizada em março, com a necessária precaução médica: foram feitos todos os exames necessários para a avaliação do risco cirúrgico, trabalho em que nossa médica – clínica e geriatra – foi extremamente eficaz.
A cirurgia propriamente dita foi um sucesso, mas a infecção exigiu, além dos cuidados durante a operação, um tratamento especial pós-operatório para eliminar possíveis bactérias remanescentes, mediante infusão de antibióticos, a qual era feita em cateter implantado no braço.
Leilah teve alta do hospital em dez dias, mas o tratamento prosseguiu em casa, em regime de “home care”. Estava previsto durar de 60 a 90 dias.
Logo após chegarmos em casa do hospital (Leilah por ambulância, acompanhada de nosso filho mais velho) recebemos o material a ser utilizado no tratamento – sacos e mais sacos de plástico contendo medicamentos, luvas para procedimentos, tubos para as aplicações e o pedestal para dependurar os frascos de medicamento, ao qual é preso um aparelho chamado “bomba” para regular o escoamento dos líquidos. Tudo, acompanhado do prontuário, uma pasta com os dados da empresa, números de telefone dos profissionais e setores envolvidos, dados da paciente e instruções para os técnicos de enfermagem. Minha filha trabalhou com a enfermeira encarregada da implantação do “home care”, na organização do material todo num espaço escolhido em uma saleta de estar do apartamento. Foi um trabalho e tanto, pois incluiu um primeiro inventário.
A empresa de “home care” (que passarei aqui a chamar de empresa, simplesmente), selecionada pelo seguro saúde dentre suas credenciadas, impressionou-me de início pelos preparativos do trabalho.
No início, o atendimento consistiu em duas visitas de técnica (ou técnico) de enfermagem, a primeira às seis da manhã, a segunda às seis da tarde, com duração de cerca de duas horas cada. Sete ou oito da manhã e sete ou oito à noite seriam mais convenientes para nós, mas não foi possível mudar. O horário, entendi logo, estava condicionado à disponibilidade dos profissionais. Estes, em sua maioria, são prestadores de serviço independentes ou organizados em cooperativas; não são empregados da empresa.
Todos os demais cuidados da paciente (inclusive os medicamentos usados além dos antibióticos) ficaram por conta da família,  sob orientação e acompanhamento de nossa médica, que estabelecia os procedimentos necessários do tratamento, comunicando-se com as médicas da empresa.
Fiquei, como cuidador oficial da paciente, encarregado do gerenciamento das operações em casa, o que incluiu a escala e a supervisão das cuidadoras para o período noturno (por conta da família) e  o contato constante com diversas pessoas da empresa. Com nossa médica comunicávamos eu e minha filha, além da própria paciente. As atividades diárias normais da casa também ficaram sob minha supervisão. Muito bom, como estágio, para um jovem octogenário, não acha, caro leitor ou prezada leitora?
A operação se revelou complexa, muito difícil frente aos recursos da empresa. Além dos técnicos (e técnicas) de enfermagem, são também terceirizados os serviços de entrega de material e coleta do lixo hospitalar. Semanalmente, vinha uma enfermeira fazer o curativo no acesso ao cateter (aquele implantado no hospital).
Logo na primeira semana, tivemos problemas: embora no procedimento da manhã tenha sido possível fixar uma das técnicas de enfermagem, à tarde os profissionais variavam e, na primeira vez de cada um, havia dificuldades, começando por não saber como chegar a minha casa; nesta, tinham de procurar o material e os medicamentos e de consultar o prontuário para saber quais os procedimentos para atender a paciente; houve até um caso de desconhecimento do tipo da bomba reguladora da infusão.
Durante o tratamento, várias reações do organismo da paciente exigiram alterações de medicamentos – aí o bicho pegava, pois os técnicos tinham a orientação de seguir estritamente os procedimentos registrados no prontuário e este não era atualizado a tempo (até a entrega das instruções do prontuário é feita por terceiros). Tínhamos de falar com os coordenadores da empresa para esclarecimento e a comunicação era difícil.
Aliás, quero destacar aqui o problema de comunicação: nossa médica, que liderou o processo, comunicava-se, por telefone e e-mail, com os médicos da empresa; estes tinham de orientar a coordenadora de enfermagem (também da empresa) responsável pelo tratamento e esta tinha de instruir os técnicos que vinham atender a paciente. E, claro, o novo procedimento escrito demorava pelo menos um dia. Algumas vezes a orientação se atrasou e uma vez foi distorcida por um mal-entendido – eu tinha de estar atento o tempo todo. Dificultava o processo o regulamento interno da empresa de não fazer comunicação por e-mail, de modo que, se um dos envolvidos não fosse alcançado por telefone, a comunicação não era feita. Discuti esse assunto com a supervisora de enfermagem, mas o regulamento é rígido – e a dificuldade permaneceu.
A troca do cateter era prevista mas o tempo de sua utilização é variável. Notei que não havia pressa em fazê-la, provavelmente porque exigiria a volta da paciente ao hospital. Até que, num domingo (claro, tinha de ser em um domingo) ele ficou entupido  e o técnico não pôde fazer a infusão dos antibióticos. Ação imediata: levamos a Leilah à emergência do hospital; ela recebeu a medicação e foi internada novamente. O cateter foi trocado (colocado no outro braço) mas enfrentamos a burocracia do processo de retorno ao regime de “home care”. Como burocracia e feriados não combinam (houve dois naquela semana) ela só voltou para casa na sexta feira à tarde. Foram retomados os procedimentos em casa.
Não cabem aqui os detalhes da colocação dos cateteres, mas o procedimento é delicado e requer ajustes, que aconteceram em ambas as implantações.
Nessa fase, o ortopedista, em exame de acompanhamento, constatou o progresso da paciente na recuperação dos movimentos, completamente sem dores, e verificou, por radiografia, as perfeitas condições da prótese. Os médicos passaram a considerar a possibilidade de encerrar em breve os procedimentos de infusão intravenosa de antibióticos e evoluir para a medicação via oral, o que iria dispensar os serviços do ”home care”. Uma febre, provavelmente causada pelo cateter, foi então determinante para que, na semana seguinte, ao completar 55 dias de tratamento pós-operatório, no hospital e em “home care”, Leilah passasse a nova fase de tratamento.
O desmonte do “home care” foi relativamente fácil.
Leilah está bem melhor agora. Embora um pouco debilitada e sofrendo ainda efeitos colaterais dos remédios, voltou às sessões de fisioterapia e nos deixa otimistas quanto à sua recuperação total em breve.

À cara leitora ou prezado leitor enfatizo que este foi um caso de “home care” entre tantos outros de características variadas. Entretanto, há certamente pontos comuns neste sistema de atendimento.
Uma observação final: um amigo me perguntou o que eu achava melhor, como solução para o tratamento pós-operatório, se a permanência no hospital durante o tratamento todo ou a passagem para o regime de “home care”.
Respondi que, de início, eu pensava que seria melhor a permanência no hospital, pelo fato de todos os recursos necessários estarem disponíveis de imediato – de profissionais, equipamento e serviços. Por exemplo, apoio médico e de enfermagem, exames de laboratório e radiografias. No hospital, a família provê apenas um acompanhante, cuja ajuda é mínima, é mais um apoio moral. No “home care”, coletas em domicílio de material para exames têm de ser agendadas em laboratórios, radiografias e outros exames requerem locomoção do paciente. Em situações de emergência, o paciente tem de ser levado imediatamente para o hospital. E mais: a família tem de gerenciar o regime, pagar cuidadores, comprar medicamentos e material que não estão no escopo do tratamento específico do “home care”.
Há, porém, dois argumentos de peso para a solução “home care”: o fantasma dos vírus hospitalares e a carga depressiva imposta à pessoa internada.
Depois que presenciei a ansiedade da Leilah por voltar para casa, em ambas as internações, concluí que a solução melhor é aquela que atenda a preferência do paciente.

No final da segunda internação, quando nós da família estávamos pedindo à Assistente Social do hospital que conseguisse o retorno ao “home care” o mais breve possível, ela comentou: “Estou admirando vocês, pois, na maioria dos casos, a família pede que o paciente continue no hospital”. Pode haver, certamente, razões fortes para esta atitude, mas minha conclusão, repito, é que a preferência do paciente, sempre que possível, deve ser atendida.
Em qualquer dos regimes, o acompanhamento dos médicos deve ser constante; em especial, a atuação da médica (ou médico), clínica particular do paciente, é fundamental.

Washington Luiz Bastos Conceição