terça-feira, 29 de maio de 2012

Tema de Jurema

Prezada leitora ou caro leitor:
Quando encaminhei a minha prima Isa os comentários elogiosos que recebi sobre sua crônica “O Sabor da Erva Mate”, soube que ela escrevera, anos atrás, uma outra; esta, sobre minha mãe, irmã do pai dela. Foi escrita quando D. Jurema estava ainda viva, tinha 90 anos, e era a única sobrevivente dentre seus irmãos. Pedi à Isa para me enviar a crônica, que estou publicando hoje, tanto por sua qualidade, quanto por ser uma prova marcante de que temos escritores em potencial que poderiam nos estar proporcionando leitura agradável através de seus livros. Vamos lembrar de que um dos objetivos deste blog é interessar amigos na atividade de escrever.
Tenho, portanto, mais uma vez, a satisfação de contar com a participação de Isa de Oliveira Siefert como cronista convidada de meu blog, resumindo uma história que, desenvolvida, poderia se tornar a biografia de uma mulher que teve uma vida longa e muito rica e, na maturidade, foi avançada para o seu tempo.

Washington Luiz Bastos Conceição


Tema de Jurema
         Eram os primeiros dias de outono, quando o céu tem aquele azul límpido e profundo, recém lavado pelas últimas chuvas do final de verão. Foi num dia assim, com as árvores ainda cobertas com sua capa verde, que nasceu JUREMA, a segunda filha mulher do casamento de José Antonio de Oliveira e Prudenciana Barbosa de Oliveira – a “Nhá Ciana” – que se casara aos 15 anos, faceira e bonita, com um viúvo de 49. Nasceu JUREMA na fazenda de seus pais, terra coberta de pinheiros e erva mate, as duas riquezas que nos primeiros 30 anos do século 20 moviam a economia do Paraná. Insinuante, sereno e cristalino, o rio Imbituvinha, que dava o nome ao lugar, passava por ali cortando e vivificando as terras, enfeitando a paisagem com suas águas mansas.
         Do mundo de sua infância – diferente, tão diferente, do mundo de hoje – faziam parte o verde a perder de vista no horizonte, o canto dos pássaros na floresta próxima, o aroma da erva mate secando nos barbaquás, o arrulho do rio, o apito e fagulhas da maria fumaça, os sinos da capela consagrada a São Sebastião, as borboletas de dia, os vagalumes à noite, o vento forte que passava uivando e deixava medo no ar. E outro barulho ainda: o canto agudo da serraria que punha abaixo o pinheiral e trocava o milagre da fotossíntese pela magia do dinheiro vivo... Desde sempre, a paixão pelo lucro derrotou a ecologia.
         A família? A família era assim: a mãe ainda jovem, o pai idoso, uma meia-irmã do primeiro casamento do pai que, solteira, permaneceu morando na casa paterna; a irmã primogênita do casal – 16 anos de diferença entre elas – e nesse intervalo uma sucessão de garotos que se apresentavam a cada dois anos. Era a família do “jota” – todos os nomes começavam com essa letra: Joséa, Jurandyr, João, Jahyr, Juruá, JUREMA, Juno e a última, que fugiu à regra e recebeu o nome de Ilka. Estes, os que sobreviveram: outros dois garotos tiveram curta passagem pela vida e se despediram depois de poucos meses de convivência.
         Uma lembrança gratificante da meninice foi seu aniversário de cinco anos: centro das atenções, ganhou bolo de vela e vestido novo, feito por Joséa, que se casara e levara a irmãzinha para viver com ela. Foi assim que, embora seus pais continuassem em Imbituvinha, ela foi morar em Curitiba, mais tarde em Ponta Grossa. Ah! Imbituvinha também enfrentou uma mudança: foi elevada a vila e passou a se chamar Fernandes Pinheiro.
        Dos seus sonhos de mocinha não vou falar, não os conheço. Não sei se teve outros namorados, algum amor frustrado, uma paixão impossível. Casou-se aos 19 anos com Osmar Bastos Conceição, um jovem professor, inteligente, impetuoso, político militante de oposição... A soma dessas qualidades, desses valores e tendências produziu um resultado explosivo: era diretor de escola pública e desagradava ao patrão... Afinal o patrão era o governo e “se hay gobierno soy contra”... Assim teve que deixar seu cargo e, antevendo perseguições mais efetivas, deixou também o Paraná com a família – mulher e dois filhos a essa altura – e mudou-se para Mirassol, cidadezinha poeirenta no interior de São Paulo. Lá, como diretor da Escola Normal, consolidou uma posição de destaque como intelectual formador de opinião. A família adaptou-se bem à comunidade, conquistou amizades duradouras e deixou saudades quando partiu. É, não ficaram longos anos em Mirassol. Não sei dizer se foi assim uma idéia de estalo, tipo Padre Vieira, ou se foi dessas coisas que começam de mansinho, quase imperceptíveis, e que vão ganhando fôlego a cada vez que se pensa nelas.
        JUREMA sempre reconheceu as qualidades evidentes do marido e teve o discernimento de valorizar as potencialidades, e começou a imaginar o que um curso superior e um “banho de civilização” fariam por aquela personalidade. Doutora em “fazer amigos e influenciar pessoas” conseguiu a adesão do marido e juntos, pesando prós e contras decidiram deixar a cidadezinha amiga mas que limitava e sufocava as oportunidades. Destino: São Paulo, capital. Trabalhar, estudar e sustentar a família, dentro de um orçamento limitado era uma tarefa assustadora, mas que foi vencida. Durante os primeiros anos viveram numa pensão à moda antiga, dessas que já não se vê mais: não havia luxo, mas conforto, não havia requinte, mas distinção, e era familiar na mais exata acepção do termo. Ali nasceu Maria da Penha, a terceira filha do casal, a que parecia que encerraria a prole.
         Depois da pensão, mais liberados na parte econômica, passaram a viver em casa alugada. Osmar havia se formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, mesma turma de Jânio Quadros, e, como professor e advogado, começava uma carreira bem sucedida. Não perdeu a verve de oposicionista: o governo em geral e Getúlio Vargas em particular, foram alvos de críticas ferrenhas. Escreveu muito, publicou alguns livros e principalmente foi influência positiva na formação de seus alunos.
         O quarto filho, Luiz Antônio, chegou e, ai sim, a família ficou completa.
       Depois do final da Segunda Guerra, que se travava lá longe mas que se sentia aqui dentro, a vida foi se tornando, gradativamente, mais fácil: foi possível comprar apartamento, pensar em viagens mais dispendiosas, se cercar de mais conforto.
        JUREMA sempre soube o que quis: queria todas as coisas boas que a vida lhe poderia oferecer. Conseguiu-as, mas não se deixou deslumbrar por elas. Temperou essa ambição salutar com um coração compreensivo e compassivo. Pôs sempre mais alto os valores essenciais da vida. Deu aos filhos um Norte muito definido, mas teve o bom senso de deixar que cada um escolhesse o caminho p’rá chegar lá. Personalidades diferentes, Túlio, Washington, Penha e Luis Antonio assimilaram a lição proveitosa dos pais e souberam construir famílias e carreiras de sucesso.
         E quando a vida parecia correr mansa e sem tropeços, a saúde de Osmar começa a falhar. JUREMA, a que gostava de viagens, de teatro e de festas, se recolhe e se dedica ao marido de forma exemplar.
         Quando ele morre, tem a sensação que também sua vida acabou. Entra em depressão: ela olha para o abismo e o abismo olha para ela. Ela vê o abismo e o abismo vê o vazio dentro dela.
        Por algum tempo nem o amor dos filhos, nem a solicitude dos amigos conseguiram preencher essa lacuna.
         Mas de repente Deus, a vida e o tempo combinados foram trazendo outra vez as cores para o seu mundo. Recuperou-se e escolheu ir de mãos dadas e de bem com a vida.
         Depois disso retomou o gosto pelas viagens: vai à Europa com certa regularidade, em visita à neta Cristina que mora em Paris. Tem em mente nova viagem aos EE.UU., p’ra conhecer André, o bisneto mais novo, nascido na Califórnia.
         Não perde de vista o que se passa na família, na cidade, no país e no mundo. Discute com propriedade seus pontos de vista, seu jeito de pensar e o Washington, que é bom de papo e de “briga” lhe proporciona o clima ideal da polêmica.
         Reciclou seus conhecimentos de escola ano após ano, com as leituras variadas, com as viagens dentro e fora do país, com a compreensão da vida, dos seres humanos, em especial dos jovens, em particular dos netos.  Aceitou a revolução dos costumes como conseqüência natural do progresso.

         É a sobrevivente do seu clã: o pai, perdeu ainda menina, pode-se dizer que mãe, perdeu duas vezes: quando morreu a verdadeira e quando morreu Joséa, a irmã mais velha que a criou a partir dos quatro anos. Todos os irmãos já se foram e muitos cunhados e cunhadas também. Sofreu com essa condição de ser a derradeira, mas nunca deixou de sonhar, e essa deve ser a receita do seu poderoso alto astral.
       Vive hoje com Penha e Roberto que lhe dão o apoio emocional de que precisa para se sentir “inteira”. Mas não desistiu de comandar o leme de sua vida e a impressão que tenho é de que até os ventos respeitam aquela que sobreviveu a tantas tempestades.
         Esta história que conto, parte dela me foi narrada, outra parte, sentida e observada, alguma coisa imaginada. Por isso haverá imprecisões, prováveis erros de avaliação, pretensão minha de ter entendido.
         Um dia, para corrigir e acrescentar talvez eu volte a me debruçar sobre o assunto e faça variações sobre o mesmo tema.
        Porque, como disse Heráclito: “VOCE PODE OLHAR DIVERSAS VEZES O MESMO RIO, NUNCA É A MESMA ÁGUA QUE VOCÊ VÊ”.

Isa de Oliveira Siefert