quinta-feira, 29 de junho de 2023

National Language

Para escrever no meu computador pessoal eu costumo usar o processador de texto Word, que vem sendo aperfeiçoado ao longo dos anos. Ele oferece muitos recursos e eu aproveito vários deles, incluindo ditado, tradução e edição de textos em diferentes idiomas. A qualidade da tradução, que não pode ser perfeita, é semelhante à do tradutor do Google (pelo menos para inglês e espanhol, idiomas em que posso fazer essa comparação). A edição melhora a redação.

A lista de idiomas disponíveis para tradução (no meu tempo de escola, quando a tradução era do Português para outra língua, chamava-se versão) é enorme; contei 114, do Africâner ao Zulu, incluindo algumas variações, como Chinês Literário, Chinês Simplificado e Chinês Tradicional, por exemplo.

Para ilustrar, mostro abaixo, sem editar, a versão para o Inglês do primeiro parágrafo acima.

To write on my personal computer I usually use the Word word processor, which has been perfected over the years. It offers many features and I take advantage of several of them, including dictation, translation and editing of texts in different languages. The quality of the translation, which cannot be perfect, is similar to that of Google's translator (for English and Spanish at least, languages in which I can make this comparison). Editing improves the wording.

Por outro lado, meu blog oferece a tradução das crônicas, do Português para 130 idiomas; meus leitores estrangeiros têm utilizado o recurso. Para ilustrar, as imagens do início de uma crônica no blog, em Português e Espanhol:




Esse extraordinário estímulo à comunicação entre pessoas me faz lembrar, frequentemente, da evolução dos softwares nessa área e, especialmente, de um dos projetos mais interessantes de que participei e gerenciei em meu trabalho na IBM do Brasil: o projeto internacional denominado “National Language”, que aconteceu no início da década de 1980.


No início de sua história, os computadores, todos de grande porte e alto preço, eram utilizados nas organizações maiores (órgãos de governo e grandes empresas) com o mesmo conceito das máquinas eletromecânicas que os precederam, ou seja, de forma centralizada, mediante um departamento chamado Centro de Processamento de Dados (o CPD). Este recebia informações dos diversos setores da organização (por exemplo, o Departamento de Pessoal), documentos e relatórios manuscritos ou datilografados, processava os sistemas respectivos (por exemplo o da folha de pagamento) e entregava os resultados (por exemplo, contracheques de pagamento e relatórios da folha). Quem lidava com os computadores eram os funcionários do CPD: analistas de sistema, programadores, operadores das máquinas e perfuradores de cartões. Assim como as mensagens e telas dos softwares, os manuais e “newsletters” disponíveis estavam em Inglês, de sorte que os profissionais precisavam ter o conhecimento desse idioma.

Quando os sistemas evoluíram para o uso de terminais nos departamentos clientes do CPD, ou seja, quando os computadores passaram a ter “usuários finais” nos demais departamentos de cada organização, surgiu a necessidade de que as telas e as mensagens operacionais do sistema, além dos manuais de instruções, estivessem no idioma dos usuários.

Daí o projeto “National Language”, que teve como objetivo produzir, para os muitos países em que a IBM atuava, software e manuais nos respectivos idiomas – em sua língua nacional.


Minha designação para o projeto me levou a trabalhar na implantação do Departamento de National Language no Brasil e a participar do grupo internacional da IBM World Trade, formado pelos gerentes de projeto dos vários países envolvidos. Havia reuniões periódicas nos escritórios da Empresa no Estado de Nova York, para discussão do progresso das atividades, para apresentações de diretrizes e para sessões de trabalho (workshops). Além das reuniões, visitávamos  fábricas e centros de desenvolvimento em várias cidades, para sermos informados sobre novos produtos, hardware e software.

Por necessidades específicas, o Canadá (pelo uso do idioma Francês do Quebec) e o Japão (com seus “alfabetos” especiais) estavam adiantados nas atividades de tradução, com departamentos bem estruturados, razão pela qual, no início do projeto, estendi minha viagem aos Estados Unidos para Montreal e Tóquio. De ambos eu trouxe informações sobre a missão e organização dos respectivos departamentos responsáveis pelas traduções, estruturados já havia algum tempo. No Japão, tive a oportunidade de admirar a criatividade dos analistas ao lidar, nos computadores, com os ideogramas. Haviam começado com o Hiragana e o Katakana, linguagens escritas simplificadas, e evoluíram para o Kanji (deste, lembro de falarem em trabalhar com 4000 ideogramas).

Nas reuniões do grupo do projeto, tomávamos conhecimento das necessidades de cada país, casos de países com dois idiomas além do Canadá (como o da Bélgica, que eu desconhecia), variantes do mesmo idioma em países diferentes (por exemplo, Francês da França e do Canadá), e a necessidade, em alguns países, de traduzirem até as placas identificadoras das máquinas.

Nessas reuniões, eram apresentados, também, produtos novos, alguns antes do anúncio pela Empresa, que iriam requerer nosso trabalho de traduções (nessas apresentações, como a IBM não podia fazer pré-anúncios, assinávamos compromissos de confidencialidade). Por exemplo, guardo a lembrança de uma incrível demonstração do futuro Personal Computer (o PC) dramatizada pelo funcionamento da máquina até com seus componentes desmontados, fora da caixa.

Houve, também, uma apresentação de software que já era classificado como  “Inteligência Artificial”. Era um programa de perguntas e respostas, semelhante, no conceito, ao sistema do Google. Não me lembro de sua abrangência, se era limitado por assuntos, por exemplo.

As visitas aos centros de desenvolvimento de software e às fábricas também eram muito interessantes para orientação ao grupo na produção de seus módulos de software e de seus manuais.

Por exemplo, em uma das fábricas, tomamos conhecimento do procedimento que a IBM chamava de “Human Factors”, que era uma pesquisa do comportamento das pessoas com capacidade de operar um certo equipamento, mas necessitavam de treinamento para um novo produto. Por exemplo, quando foi introduzido o disquete flexível (o floppy disk), fizeram a pesquisa pondo as pessoas em uma sala fechada frente ao equipamento e dando, sem instrução prévia, um disquete para introduzir na máquina e digitar um documento. As reações das pessoas, observadas pelos técnicos fora da sala, eram as mais variadas e indicavam que tipo de treinamento e informação eram necessários para o bom uso do produto.

Nos centros de desenvolvimento de software, éramos informados, sempre nos comprometendo com a confidencialidade, sobre as características dos produtos em desenvolvimento que teríamos de traduzir. O Centro de Desenvolvimento de software de Santa Teresa, na Califórnia, próximo a San José, impressionava os visitantes por ser um edifício moderno construído em um terreno de fazenda, bucólico, com o objetivo de proporcionar aos profissionais de desenvolvimento de software um ambiente tranquilo para seu trabalho. 

De início, a tradução de programas, era muito difícil porque os textos das telas e mensagens em Inglês estavam inseridos na sequência das instruções e precisavam ser pesquisados nos programas, geralmente muito grandes e complexos. Um dos analistas de meu departamento foi aos Estados Unidos trabalhar em um projeto desse tipo, enfrentando a dificuldade enorme do processo. Experiências desse tipo levaram a IBM a mudar a arquitetura dos programas, mediante a inclusão de um módulo de tradução que cada país líder do idioma passou a preparar para introdução no software respectivo.

Alguns anos depois de minha saída da IBM, minha empresa de assessoria e consultoria prestou à IBM serviços de análise de sistemas e tradução na produção dos módulos de “National Language” para vários softwares de mainframes.


Pelo que comentei de início quanto aos recursos de tradução do Word e do Blogger (programa do blog), percebe-se que dou muito valor ao recurso de tradução disponível, hoje em dia, nos aplicativos e software em geral. Dou valor, não somente por ter participado de um trabalho pioneiro tão interessante e importante no processo de globalização da Informática, como também e principalmente, porque a tradução facilita enormemente a comunicação entre pessoas no mundo todo, cada vez mais necessária hoje em dia.

Washington Luiz Bastos Conceição


Notas:

  • Em uma das reuniões do grupo de National Language reencontrei Hiroaki Fujita, o colega japonês com quem trabalhei no Projeto 3.7 da IBM, em Chicago, em 1968 e 1969.
  • Dentre os módulos que minha empresa traduziu para a IBM, destacaram-se o Db2 Query Management Facility (QMF), o Cross System Product (CSP) e o OfficeVision/VM.

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Viagem de Final de Curso

Nesta semana, faleceu um colega de minha turma de Engenharia da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, colega que se tornou um grande amigo, o engenheiro e professor Eluízio de Queiroz Orsini. Casado com Laïs, também colega de turma, o casal manteve, comigo e Leilah, minha esposa, um forte laço de amizade, da juventude à idade avançada.

A triste notícia me trouxe à lembrança um acontecimento que nos aproximou, a mim e ao Eluízio, tornando-nos, além de colegas de classe, grandes amigos. Esse acontecimento foi uma viagem que fizemos, em grupo, no último ano de nosso curso.

Transcrevo a seguir, de meu primeiro livro (o “Histórias do Terceiro Tempo”, publicado em 2009) a narração dessa viagem.


A lo mejor me deportan...

Passei um sufoco em La Paz em um ensolarado domingo de julho. Julho de 1955.

Era meu último ano de Engenharia e eu estava na Bolívia, com um grupo de colegas, em uma viagem de final de curso. Embora tivesse levado dinheiro acima do valor orçado (42% a mais) a viagem não ocorreu conforme as previsões do grupo, quanto aos meios de transporte e quanto à ajuda de hospedagem por parte das autoridades locais, em cada cidade que íamos visitar. As despesas reais estavam bem maiores do que as planejadas. Eu corria o risco de não ter dinheiro suficiente para voltar ao Brasil.

Viagem de estudante daquele tempo era fogo! Nada de Europa, Estados Unidos e outros lugares do Primeiro Mundo. E, também, não podia ser muito longe, porque viajar de avião era para gente rica.

Havia, porém, a tradição de, no fim do curso, os universitários fazerem uma viagem, supostamente relacionada com os estudos, para as quais conseguiam algumas vantagens e favorecimentos nos preços de passagens e hospedagens.

Formamos um grupo de oito estudantes da Poli, a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e de três da Pauli, a Escola Paulista de Medicina, para fazermos uma viagem à Bolívia.

A iniciativa e a  organização foram de meu colega, Eluízio Orsini, o Zico, e seu amigo Ciro, também politécnico. Em memorável reunião, temperada pela fumaça dos cachimbos dos dois, eles nos descreveram o programa: de São Paulo a Bauru por trem da Sorocabana ou da Companhia Paulista; de Bauru para Corumbá, pela Estrada de Ferro Noroeste. Então, teríamos a oportunidade ímpar de conhecer a Estrada de Ferro Brasil-Bolívia, recém-inaugurada pelo Presidente Café Filho, vice-presidente que assumiu o governo após o suicídio de Getúlio Vargas. Essa etapa nos levaria de Corumbá a Santa Cruz de La Sierra. A seguir, Cochabamba, La Paz e, se possível, chegaríamos ao Peru pelo lago Titicaca. Conseguiríamos as passagens de trem e, quanto às despesas de hospedagem, a expectativa, nada modesta, era de que os prefeitos e outras autoridades de cada cidade se sentiriam honrados em pagá-las por nós. A partir dessas premissas, foi feito o orçamento per capita. Compras e extras ficariam por conta de cada um.

Em matéria de aprendizado, faríamos uma enorme quilometragem de estrada de ferro e, em termos de aventura, a viagem seria um prato cheio. Nada melhor para jovens de vinte e poucos anos que iriam cair na vida dura em seis meses!

De posse das passagens de trem para a ida e a volta no percurso São Paulo – Corumbá, saímos de São Paulo no início de julho.

De São Paulo a Bauru, tudo muito bem – o trem era confortável, a viagem foi muito boa. Chegamos à tarde e, à noite, embarcamos para Corumbá. O trem já não era tão bom, mas conseguimos leitos, muito importantes porque a viagem iria durar uns três dias. Depois de um bom trecho ainda no estado de São Paulo, cruzamos o rio Paraná, entramos em Mato Grosso (hoje, do Sul), passamos sucessivamente por Três Lagoas, Campo Grande, Aquidauana, com algumas paradas imprevistas por problemas na ferrovia, até chegarmos a Corumbá. Como “estudo”, tivemos a experiência de usuário da ferrovia em si e o conhecimento de algumas pontes importantes (embora não parássemos  para observá-las melhor, pois estávamos em um trem comum de passageiros).

Em Corumbá, onde tivemos dificuldade para conseguir hotel, fomos acomodados em um salão grande do Hotel Venizelos, como se estivéssemos em um alojamento militar – e pagamos bem. Lá constatamos que, além do nosso grupo, mais uns dez grupos estavam indo para a Bolívia, entre os quais um da Faculdade de Arquitetura da USP, outro de Ciências Sociais, outro da Faculdade de Odontologia de Alfenas, Minas Gerais. Iríamos encontrar estudantes brasileiros ao longo de toda a viagem.

Ao tentar programar a viagem de trem para Santa Cruz, constatamos que o trem utilizado para a inauguração da Brasil-Bolívia era especial, não circulava normalmente; a viagem teria de ser feita num trem misto (passageiros e carga) em condições totalmente inadequadas. Entre desistir da viagem e prosseguir de outra forma, optamos por fretar um avião, juntamente com os colegas da Arquitetura, para o trecho Puerto Suarez – Santa Cruz. Puerto Suarez fica na Bolívia, do outro lado do Rio Paraguai, em frente a Corumbá. Cruzamos a fronteira, jantamos e dormimos em Puerto Suarez e embarcamos na manhã seguinte. Das acomodações dessa noite, não me lembro, mas do jantar, cujo prato principal era uma espécie de sopa de fubá, sim. Para horror do Sérgio Bastos, que era um bocado enjoado com comida, experimentei a gororoba – eu era bom garfo e corajoso.

Ao mencionar o Sérgio Bastos, meu colega e amigo desde o primeiro científico, primo da Leilah, lembrei-me de que ainda não contei quem participou desta aventura. Da Politécnica: além de nós dois, Eluízio Orsini, um dos organizadores já mencionados, colega que conheci melhor na viagem e com quem mantenho grande amizade; agora somos velhos amigos velhos; o Ciro, o outro organizador, amigo do Zico; o Sérgio Cataldi, outro grande amigo meu até hoje, com quem o Bastos e eu formamos uma “panelinha” para revezamento em algumas aulas teóricas (a “Panela de Ouro”, nome inspirado no papel amarelo que usávamos para nossas anotações); Antoninho Mellone, embora da nossa idade, primo do pai da Leilah; Olympio Pereira de Sousa, um dos goleiros do nosso time de várzea, o “ijk”; Airton Bassani, colega sério e compenetrado; Eduardo Buenaventura de Bello Pedreschi, o Bello, grande panamenho, bolsista, ele e eu servimos de intérpretes para o grupo, quando surgia na comunicação alguma dificuldade com o Espanhol. Da Paulista: o Emílio, o Junqueira e o Lima, dos quais só me lembro do nome de guerra, embora me recorde muito bem deles.

Deu onze? Então relacionei todos.

O grupo: aproveitamos uma parada forçada do trem

 Na manhã seguinte, lá estava, no aeroporto de Puerto Suarez, um belo DC3 esperando por nós.

O DC3 foi, por muito tempo, o avião mais usado no Brasil e, provavelmente, nos países vizinhos, nas décadas de 50 e 60 do século passado. Era um bimotor, a hélice, motor de explosão, asa baixa, relativamente seguro; seu trem de aterragem era composto de duas rodas sob a asa, complementado com uma na cauda. Não me lembro de grandes problemas com esse tipo de avião.

Embarcamos, o nosso grupo e o da Arquitetura, do qual participava um conhecido meu, o Roberto Frioli, namorado (depois noivo e marido) da Isabel, colega de turma e amiga da Leilah. Como os arquitetos eram dez, o avião estava levando 21 passageiros, todos estudantes na casa dos vinte e poucos anos, cheios de energia e animados com a viagem.

A grande emoção do voo aconteceu quando organizaram um programa de visitas à cabine dos pilotos, três ou quatro visitantes de cada vez. Na minha vez, um coleguinha perguntou ao comandante sobre a potência do avião, se era adequada àquela rota. O comandante respondeu algo como: “Claro, esta aeronave voa com apenas um dos motores! Quer ver?” e desacelerou (ou terá mesmo desligado?) um dos motores. Até hoje me lembro do frio que senti na barriga!

A menos da demonstração do piloto, a viagem foi normal e chegamos bem a Santa Cruz de La Sierra.

Santa Cruz, em nosso plano de viagem, era apenas uma parada, não tínhamos planejado nenhuma excursão ou visita especial. Limitamo-nos a conhecer o centro da cidade, sua praça principal, onde fica a Catedral. Chamou-me atenção, além da arquitetura pesada da Igreja, a elevação das calçadas, de cerca de meio metro acima do nível da rua. Fomos visitar a prefeitura para pedir ajuda na hospedagem e no transporte para Cochabamba, mas não conseguimos nada.

Novamente, tivemos de viajar de avião, por nossa conta. Era um avião de carreira, um quadrimotor, provavelmente um DC4. O avião tinha uma configuração padrão de assentos; a única coisa diferente era um grande tubo de oxigênio no fundo, junto ao posto da aeromoça (comissária de bordo). Durante o voo, ficamos sabendo para que servia o tubo: como estávamos subindo para o altiplano (de 400 a 2500 metros de altitude, em números redondos) e a aeronave não era equipada com máscaras de oxigênio como nos aviões de hoje, a aeromoça tinha de injetar, intermitentemente, oxigênio na cabine.

Lembro-me que Cochabamba nos pareceu uma cidade agradável e que ficamos num bom hotel, conseguindo desconto mediante o alojamento de três ou quatro por apartamento.

De Cochabamba a La Paz, um dia de trem, mais ou menos. Os carros eram relativamente confortáveis e, à noite, em Oruro, passamos a um carro com cabines. Conseguimos, porém, apenas nove leitos para os onze passageiros; dois tinham de ficar de fora e dormir nas poltronas do carro comum. Decidimos driblar os fiscais do trem e fomos os onze para as cabines, sorteando duas duplas. Fui sorteado, tive de dormir com o Cataldi; ele não era lá muito magro, mas eu era. Não houve problema, apenas o suspense da visita do chefe de trem que foi examinar as cabines com uma lanterna. Escondemo-nos bem e passamos no exame.

Chegamos a La Paz no dia seguinte, à tarde. Como a cidade fica numa espécie de cratera, a última etapa da viagem foi a descida do trem para a estação, que deve ter durado mais de meia hora. Estávamos descendo de uns 4000 e poucos metros de altitude para apenas 3660!

Tínhamos cumprido, então, o seguinte roteiro:


Desenho sobre o mapa do Google

A essa altura da guerra, já não tínhamos mais ilusão de conseguir qualquer desconto de hospedagem, de forma que optamos pelo Itália, hotel relativamente afastado do centro, um prédio antigo e simples, porém confortável, com uma quadra de bola ao cesto (basquete). Ficamos todos animados; na mesma tarde de nossa chegada, decidimos nos exercitar. Alguns, que trocaram logo de roupa e chegaram antes à quadra, jogaram uns minutos de basquete, mas depois armamos um racha (pelada) de futebol de salão. Então, meus caros leitores, a experiência inesquecível: aqueles garotos, em plena forma física, praticantes de futebol e outros esportes, em quinze minutos estavam de língua de fora! Por isso, sempre que assisto, pela televisão, a jogos de algum time de fora naquela cidade, lembro-me de nossa surpresa e entendo muito bem a dificuldade dos jogadores.

Em La Paz até que passeamos um pouco: conhecemos, e lá fomos várias vezes, a praça central, em frente ao Palácio do Governo. Na praça, como informação turística, mostraram-nos o poste onde um presidente deposto (Villaroel) tinha sido enforcado depois de assassinado no Palácio. Fomos ao mercado, onde fizemos pequenas compras, como meias de lã e gorros (os “pasamontañas”, aqueles gorros coloridos que cobrem as orelhas) mas eu nem tentei comprar a estola de pele que tinha planejado levar ao Brasil, pois já sabia que o dinheiro estava ficando curto. Visitamos também a Universidad Mayor de San Andrés, onde encontramos um estudante falando um português perfeito e sem sotaque espanhol; todos pensamos que ele fosse brasileiro, mas era um boliviano que tinha morado no Brasil. Fora do comum para nós, o prédio da Universidade era um edifício bem alto no centro da cidade.

Nossa possível viagem ao Peru, através do Titicaca, foi descartada por falta geral de recursos, mas quisemos conhecer o lago navegável mais alto do mundo. Tomamos um trem para o porto de Guaqui, aonde chegamos depois de umas quatro horas. Era um vilarejo à beira do lago, largas ruas não pavimentadas, não vimos nada de interessante, apenas conhecemos o lago e o porto. Nada de mais a não ser o registro de que estivemos lá. Alojamo-nos numa espécie de pensão, uma casa bem grande de dois andares, mas que não estava em condições de hospedar o grupo devidamente. O jantar, um macarrão aguado e sem graça, foi improvisado e foram colocadas camas em quartos bem grandes no andar de cima. A perspectiva era triste: uma noite naquele lugar ermo, sem nada que fazer. Mas daí, alguém, tentado pelo demônio, descobriu e comprou umas garrafas de pisco num armazém próximo e resolvemos provar. Primeira impressão: “Bebida fraca, não se compara com a cachaça.”;  depois: “Já bebi duas doses e não sinto nada.”; e assim foi até que, um a um, ficamos todos de porre, o maior porre coletivo que presenciei na vida. À medida que um deles ficava ruim, os outros ajudavam, levavam-no para tomar ar na rua, mas todos acabaram sucumbindo. O Antoninho e eu estávamos aguentando bem, eu estava todo senhor de mim, apreciando pela janela do quarto o céu mais estrelado que vi em minha vida. Então, o Antoninho me ofereceu um cigarro (eu não fumava e, acho, ele também não). Comecei a fumar, sem tragar. De repente, o bicho pegou – tive de descer ao banheiro às pressas e vomitar a alma. O Antoninho também capotou.

No dia seguinte, ao embarcarmos no trem, de volta para La Paz, estava todo mundo meio zumbi, quieto, curtindo a ressaca.

A excursão a Guaqui foi dramaticamente inesquecível. Para a dona da pensão também, que disse que nunca mais iria hospedar brasileiros!

O que vimos de interessante em La Paz foi a festa tradicional dos índios, realizada em julho, a “Diablada”. Assistimos, no Estádio de Futebol de La Paz, ao espetáculo dos grupos de várias cidades, numa organização semelhante ao desfile de escolas de samba. Os participantes se fantasiavam de “diablos”, pintados e com chifres; tocavam flautas longas, acompanhadas por tambores. O colorido das roupas, não só dos artistas como da própria audiência, era muito bonito e as danças bem movimentadas. Para mim, entretanto, depois de ver umas três diabladas (a mais famosa era a de Oruro) já tinha visto tudo, pois parecia uma repetição infindável. Assim mesmo, parece-me, assistimos a todo o espetáculo.

De qualquer forma, valeu a pena.

Meus companheiros foram ainda a Chacaltaya, pico da Cordilheira dos Andes perto de La Paz, mas eu não pude ir porque tive de antecipar a viagem.

Para que não ficasse sem dinheiro para voltar ao Brasil, problema que estudantes de outras faculdades já estavam tendo, antecipei minha data de volta. Meus colegas iam voltar na terça ou quarta e eu programei voltar no domingo para aproveitar, em Santa Cruz, uma carona com os cariocas da Escola Nacional de Engenharia, que tinham conseguido o transporte por trem especial de Santa Cruz de La Sierra para Corumbá.

Eu tinha, então, de providenciar, junto à Polícia, em La Paz, minha documentação de volta, uma espécie de salvo-conduto, exigência do governo deles daquele tempo. Tudo isso, em pleno domingo!

Fui ao quartel da Polícia. Dei sorte, porque o oficial que me atendeu, todo galã, estava com a noiva. Talvez por estar com ela, foi muito cordial, me atendeu muito bem e preparou o documento. Só que eu tinha de conseguir também a assinatura de uma autoridade de outro órgão do governo, que não funcionava aos domingos. Como eu tinha de tomar o avião naquela tarde, o oficial me deu o endereço da casa da pessoa – e para lá fui.

Encontrei a casa do homem. Por sorte ele estava, me atendeu muito bem e, afinal, consegui sua assinatura no documento.

Do aeroporto de La Paz, voei para Santa Cruz, encontrei os cariocas, me juntei a eles e fomos de trem para Corumbá, o que levou uns três dias de viagem, pois à noite o trem ficava parado para o maquinista dormir. As estações também fechavam à noite, de modo que não podíamos comprar comida para jantar – eta viagem boa! As dificuldades foram compensadas pela alegria e cordialidade da turma. Afinal, chegamos de volta ao Brasil.

Em Corumbá, juntei-me novamente ao meu grupo, que voltou da Bolívia de avião. Finalmente, tomamos o trem de volta para São Paulo.

Não posso me esquecer, contudo, da sorte que tive naquele último domingo em La Paz, e, especialmente, da atenção do homem que assinou o meu salvo-conduto. Funcionário de um governo forte, num país com histórico de várias revoluções, ele me disse algo que me calou fundo e que gravei na memória. Quando agradeci a gentileza dele e lhe dei um cartão com meu endereço, dizendo para me procurar se algum dia fosse a São Paulo, ele tomou o cartão, um pouco hesitante, fez uma cara um tanto desanimada e falou: “Está bien, a lo mejor me deportan...”.


Sei de cinco companheiros do grupo que nos deixaram antes do Zico; dos outros, não tive notícia. Contudo, durante muito tempo, essa viagem de jovens estudantes foi uma alegre recordação para nós, por tudo que vimos e passamos. Para mim, hoje, carregada de forte emoção.

Washington Luiz Bastos Conceição