Caro leitor ou prezada
leitora:
Prossigo em meu
programa de lhe oferecer mais de meus escritos neste tempo de isolamento social.
Desta vez, considerando a gentil recepção dos leitores à crônica sobre boleros,
trago a história de meu interesse por tangos, transmitido pelo meu pai, grande
apreciador da música portenha.
Apresento-lhe a transcrição de mais uma parte
do capítulo “A música e eu” de meu primeiro livro, o “Histórias do Terceiro
Tempo”, publicado em 2009.
Dedico esta publicação a meu pai e seus contemporâneos
que, muito provavelmente, transmitiram aos filhos o gosto por suas músicas
preferidas.
Introdução
Nunca estudei música, não
tenho bom ouvido e, quando tento cantar, desafino. Enfim, sou um ignorante que,
humildemente, gosta de ouvir vários gêneros de música: desde marchinhas de
carnaval, sambas, bossa nova, música brasileira em geral, boleros e tangos, até
óperas e música clássica. Variado, não é?
Vocês poderão dizer:
“Caramba (ou outra interjeição que costumem usar mais), Washington, deve ser
tudo o que os seus contemporâneos curtiram ao longo da vida – qual é a
novidade?”.
Tangos, meu
pai e eu
Em 2005, Leilah e eu
tiramos uma semana de férias e fomos a Buenos Aires.
Eu já tinha estado lá, a
trabalho, por três vezes, gostei da cidade, mas não fiz nada de turismo. Além
dos jantares com os colegas da IBM, tinha tido a oportunidade de, na primeira
vez, nos idos de 1962, comer uma parrillada num dos carritos de madeira que
havia na Costanera, na margem do rio; na segunda vez, em 1964, assisti a um
show de variedades no Teatro Maipu, quando uma ótima cantora interpretou
“Tiempos Viejos”, um de meus tangos preferidos; na terceira vez, em 1970, um
colega argentino nos levou ao teatro para assistir a uma peça de Becket (desse
programa, só me ficou a lembrança de que o teatro era muito bonito).
Leilah não conhecia
Buenos Aires e se encantou. Para mim, depois de tantos anos (trinta e cinco,
meu Deus!) encontrei muita coisa nova. Às suas atrações de metrópole de ar
europeu, acrescentou Puerto Madero e outras edificações modernas que a tornam
eminentemente turística. Entre outros programas, fomos assistir a uma peça
musical, “Tanguera”, um balé de tango com um grupo simplesmente eletrizante –
eles eram, ao mesmo tempo, bailarinos clássicos, acrobatas, cantores, atores
com uma energia fabulosa. Também fomos a um show de tangos no tradicional Café
Tortoni, onde, além do show, pudemos apreciar sua decoração “art nouveau”.
Esse ambiente me trouxe
lembranças fortes de meu pai, que tinha no tango sua música popular favorita.
Meu interesse por tangos
devo exclusivamente ao meu pai. Não aprendi a dança, quando moço não conseguia
nem enganar, mas gosto muito dos tangos clássicos que meu pai ouvia no rádio e
nos discos que tinha em casa. Tango é música da geração dele, dominou sua época
de juventude. Foi, para ele, o que o bolero foi para mim. Não sei se ele
conhecia já o tango argentino quando, muito jovem, formado professor, mudou-se
para Santa Maria, no Rio Grande do Sul, para tentar a vida sozinho – era uma
aventura e tanto! Lá, trabalhou como telegrafista da estrada de ferro, como
professor e ainda tocava piano no cinema fazendo o acompanhamento dos filmes
mudos. Era a década de 1920, meus caros!
Rapaz solteiro,
desimpedido, frequentava os cabarés locais com um grupo de amigos, onde o tango
era a música predominante, com sua dança sensual e suas letras dramáticas,
muitas delas saudosistas, pessimistas e, até cínicas. Meu pai dançava tango e
concluí que foi lá que aprendeu o Espanhol, que dominava. Quando, depois de
algum tempo, voltou ao Paraná (dizem as más línguas que fugiu da namorada de lá
porque o caso estava ficando sério e ele não queria, ainda, se casar), trazia a
lembrança de seus tangos preferidos – e provavelmente partituras para piano –
uma lista que foi ampliada ao longo dos anos.
Tomei conhecimento de
tangos através dos programas de rádio que meu pai ouvia regularmente,
principalmente na Rádio Gazeta, de São Paulo. Com a compra da vitrola, eu
ouvia, mesmo sozinho, os discos dele, que passei a apreciar muito. Eram discos
de 78 RPM, com uma música de cada lado, que guardávamos em álbuns. Os cantores
mais conhecidos eram, claro, Carlos Gardel, Libertad Lamarque, Hugo del Carril,
mas meu pai gostava mesmo era da Mercedes Simone, cuja voz era muito agradável.
Em geral, a interpretação era das orquestras típicas, as quais tinham seus
próprios cantores: Francisco Canaro, Juan Darienzo e Aníbal Troilo são nomes
que me vêm à memória.
Eu gostava de cantar
“Yira, Yira”, cuja letra tem versos terríveis: “Verás que todo es mentira,
verás que nada es amor, que al mundo nada le importa, yira, yira...”; “cuando
manyés que a tu lado se prueban la ropa que vas a dejar...”. Meu pai e minha
mãe gostavam muito de “Caminito”, o preferido de minha irmã era “Madreselva”,
que conta a história de uma pessoa que deixa, jovem, sua casa (com sua “vieja
pared”, onde floresciam as “madreselvas” ) e volta desiludida da vida: “y así
aprendi que hay que mentir para vivir decientemente”.
Mais recentemente, quando
já morava no Rio, não pude deixar de apreciar o “Balada para um loco”, de
Piazolla, cantado por Amelita Baltar (“Ya sé que estoy piantao, piantao,
piantao...”).
Meu preferido é, definitivamente, “Tiempos Viejos”, que teve uma
interpretação perfeita de Mercedes Simone. Vou abusar da paciência de vocês e
transcrever quatro versos:
“¿Te acordás hermano que tiempos aquellos?
Veinte y cinco abriles que no volverán...
¡Veinte y cinco abriles! ¡Volver a tenerlos!
¡Y cuando me acuerdo me pongo a llorar...!”
Nos últimos anos, o tango
vem sendo motivo central de vários filmes que enfocam a dança, ressaltando sua
atração misteriosa.
Na verdade, para mim, os
tangos são uma espécie de porre musical, que a gente gosta de tomar de vez em
quando.
Washington Luiz Bastos Conceição
Suplemento:
Como ilustração da crônica, os leitores poderão ouvir alguns dos
tangos que selecionei no Youtube e relaciono abaixo, indicando os respectivos
links. Nessa seleção, procurei alguns números musicais e intérpretes que
mencionei na crônica e, como aconteceu com os boleros, fui
surpreendido com as gravações de intérpretes de gerações recentes. Em geral,
são áudios, mas há algumas apresentações com slides e vídeos.
“Tiempos Viejos”, com
Mercedes Simone.
“Caminito”, com Plácido
Domingo
“Yira yira”, com Carlos
Gardel
“Balada para um loco”,
com Amelita Baltar
“Uno”, com Hugo del Carril
“Nostalgias”, com Libertad
Lamarque
“Alma del Bandoneon”, com
Francisco Canaro e sua Orquestra
“Poema”, com os
bailarinos Sergey Kurkatov e Yulia Burenicheva e a orquestra típica "Solo
Tango".
“A media luz”, com Carlos
Gardel
“En esta tarde gris”, com
a orquestra de Anibal Troilo
“Cambalache”, com Enrique
Santos Discépolo
“Adiós, muchachos”, com Germán
Vega ao acordeom
“Percal”, com Mercedes
Simone
“Volver”, com Carlos
Gardel
“La cumparsita”, com a Orquesta
Típica de Tango Band-O-Neon
Washington, não imaginava que você é um profundo conhecedor do tango.
ResponderExcluirEstive várias vezes em BA a serviço e o local preferido nos anos 60 acho que que era o Viejo Armazen que ainda funcionava até nos inicios de 80.
Talvez embolei o nome mas eram estadias memoráveis. Nos anos 80 fui com um grupo de Marketing e havia uma funcionária da Venezuela na reunião. Bem fomos a este local famoso e a moça começou a cantar tango que fez todo restaurante aplaudir.
Belas lembranças .....Heinz
Minha mãe adorava boleros e tangos... cantava bem em espanhol sem nunca ter aprendido, tinha bom ouvido. Já meu pai gostava de uma série de discos chamada Metais em Brasa, que aprendi a gostar de tanto que escutei na minha infância...
ResponderExcluirDe D.Izette, mãe de minha nora Adriana:
ResponderExcluirBom dia, Washington. Depois de ler a sua crônica, da qual, aliás, gostei muito, quero dizer que eu sou do tempo do Bolero, mas aprecio, também, o Tango, principalmente o ”La Cumparsita” que eu tocava no piano!!! Boas recordações! Abraços para Leilah e para você.
Do primo Luiz Cezar:
ResponderExcluirRi muito com o arremate da sua crônica "...para mim, os tangos são uma espécie de porre musical, que a gente gosta de tomar de vez em quando". Essa foi ótima.
Mas eu, particularmente, não resisto a tomar esse porre mais vezes.
À sua preciosa lista eu teria muitos outros memoráveis tangos a incluir, como Por Una Cabeza, Amargura, El Dia en que me quieras... e vai por aí.
Gostaria de ter tido oportunidade de conversar com o saudoso tio Osmar sobre as experiências dele naquela época em que, pianista, bom dançarino e amante do estilo, sentiu as vibrações sensuais do ambiente em que o tango pulsava intensamente.
Muito agradável e envolvente a crônica.
Do primo Ruy:
ResponderExcluirOi, Washington, muito boa crônica.
Lembro ainda de alguns tangos como Uno, Volver, A media luz, Mi Buenos Aires querido, El Choclo, enquanto trago duas historinhas pertinentes.
1. O grande Carlos Gardel tinha como parceiro o compositor Alfredo Le Pera, na verdade Alfredo Pereira, jornalista nascido em São Paulo em 1900 e falecido na Colômbia precocemente em 1935. Conta -se que a dupla, em certa ocasião, precisou desviar o caminho de sua viagem para o sul e foi bater em Guarapuava. Cantaram na zona da cidade onde Le Pera tomou um porre e foi levado à casa de um advogado local, onde dormiu tanto que perdeu a condução para casa.
2. Sempre achei que os tangos clássicos tinham que ser cantados e tocados de um jeito só. Por isso, quando me recomendaram o disco de tangos de Julio Iglesias achei que era brincadeira. Considerava-o um cantor mediano de boleros idem. Para minha surpresa, esse seu trabalho só merece elogios. Trata-se de uma incrível experiência com o que se poderia chamar de tango-bolero ou tango "abolerado". Quem disse que seria algo desprezível? Interpretação criativa, voz adaptada a um estilo agradável, arranjo instrumental seguro e impecável. Claro que o ouvinte precisa se "desligar" da versão tradicional. Vale a pena conferir.