sexta-feira, 1 de maio de 2020

Tangos - De pai para filho


Caro leitor ou prezada leitora:
Prossigo em meu programa de lhe oferecer mais de meus escritos neste tempo de isolamento social. Desta vez, considerando a gentil recepção dos leitores à crônica sobre boleros, trago a história de meu interesse por tangos, transmitido pelo meu pai, grande apreciador da música portenha.
Apresento-lhe a transcrição de mais uma parte do capítulo “A música e eu” de meu primeiro livro, o “Histórias do Terceiro Tempo”, publicado em 2009.
Dedico esta publicação a meu pai e seus contemporâneos que, muito provavelmente, transmitiram aos filhos o gosto por suas músicas preferidas.



Introdução

Nunca estudei música, não tenho bom ouvido e, quando tento cantar, desafino. Enfim, sou um ignorante que, humildemente, gosta de ouvir vários gêneros de música: desde marchinhas de carnaval, sambas, bossa nova, música brasileira em geral, boleros e tangos, até óperas e música clássica. Variado, não é?
Vocês poderão dizer: “Caramba (ou outra interjeição que costumem usar mais), Washington, deve ser tudo o que os seus contemporâneos curtiram ao longo da vida – qual é a novidade?”.




Tangos, meu pai e eu

Em 2005, Leilah e eu tiramos uma semana de férias e fomos a Buenos Aires.
Eu já tinha estado lá, a trabalho, por três vezes, gostei da cidade, mas não fiz nada de turismo. Além dos jantares com os colegas da IBM, tinha tido a oportunidade de, na primeira vez, nos idos de 1962, comer uma parrillada num dos carritos de madeira que havia na Costanera, na margem do rio; na segunda vez, em 1964, assisti a um show de variedades no Teatro Maipu, quando uma ótima cantora interpretou “Tiempos Viejos”, um de meus tangos preferidos; na terceira vez, em 1970, um colega argentino nos levou ao teatro para assistir a uma peça de Becket (desse programa, só me ficou a lembrança de que o teatro era muito bonito).
Leilah não conhecia Buenos Aires e se encantou. Para mim, depois de tantos anos (trinta e cinco, meu Deus!) encontrei muita coisa nova. Às suas atrações de metrópole de ar europeu, acrescentou Puerto Madero e outras edificações modernas que a tornam eminentemente turística. Entre outros programas, fomos assistir a uma peça musical, “Tanguera”, um balé de tango com um grupo simplesmente eletrizante – eles eram, ao mesmo tempo, bailarinos clássicos, acrobatas, cantores, atores com uma energia fabulosa. Também fomos a um show de tangos no tradicional Café Tortoni, onde, além do show, pudemos apreciar sua decoração “art nouveau”.
Esse ambiente me trouxe lembranças fortes de meu pai, que tinha no tango sua música popular favorita.

Meu interesse por tangos devo exclusivamente ao meu pai. Não aprendi a dança, quando moço não conseguia nem enganar, mas gosto muito dos tangos clássicos que meu pai ouvia no rádio e nos discos que tinha em casa. Tango é música da geração dele, dominou sua época de juventude. Foi, para ele, o que o bolero foi para mim. Não sei se ele conhecia já o tango argentino quando, muito jovem, formado professor, mudou-se para Santa Maria, no Rio Grande do Sul, para tentar a vida sozinho – era uma aventura e tanto! Lá, trabalhou como telegrafista da estrada de ferro, como professor e ainda tocava piano no cinema fazendo o acompanhamento dos filmes mudos. Era a década de 1920, meus caros!
Rapaz solteiro, desimpedido, frequentava os cabarés locais com um grupo de amigos, onde o tango era a música predominante, com sua dança sensual e suas letras dramáticas, muitas delas saudosistas, pessimistas e, até cínicas. Meu pai dançava tango e concluí que foi lá que aprendeu o Espanhol, que dominava. Quando, depois de algum tempo, voltou ao Paraná (dizem as más línguas que fugiu da namorada de lá porque o caso estava ficando sério e ele não queria, ainda, se casar), trazia a lembrança de seus tangos preferidos – e provavelmente partituras para piano – uma lista que foi ampliada ao longo dos anos.
Tomei conhecimento de tangos através dos programas de rádio que meu pai ouvia regularmente, principalmente na Rádio Gazeta, de São Paulo. Com a compra da vitrola, eu ouvia, mesmo sozinho, os discos dele, que passei a apreciar muito. Eram discos de 78 RPM, com uma música de cada lado, que guardávamos em álbuns. Os cantores mais conhecidos eram, claro, Carlos Gardel, Libertad Lamarque, Hugo del Carril, mas meu pai gostava mesmo era da Mercedes Simone, cuja voz era muito agradável. Em geral, a interpretação era das orquestras típicas, as quais tinham seus próprios cantores: Francisco Canaro, Juan Darienzo e Aníbal Troilo são nomes que me vêm à memória.
Eu gostava de cantar “Yira, Yira”, cuja letra tem versos terríveis: “Verás que todo es mentira, verás que nada es amor, que al mundo nada le importa, yira, yira...”; “cuando manyés que a tu lado se prueban la ropa que vas a dejar...”. Meu pai e minha mãe gostavam muito de “Caminito”, o preferido de minha irmã era “Madreselva”, que conta a história de uma pessoa que deixa, jovem, sua casa (com sua “vieja pared”, onde floresciam as “madreselvas” ) e volta desiludida da vida: “y así aprendi que hay que mentir para vivir decientemente”.
Mais recentemente, quando já morava no Rio, não pude deixar de apreciar o “Balada para um loco”, de Piazolla, cantado por Amelita Baltar (“Ya sé que estoy piantao, piantao, piantao...”).
Meu preferido é, definitivamente, “Tiempos Viejos”, que teve uma interpretação perfeita de Mercedes Simone. Vou abusar da paciência de vocês e transcrever quatro versos:
                     “¿Te acordás hermano que tiempos aquellos?
                      Veinte y cinco abriles que no volverán...
                      ¡Veinte y cinco abriles! ¡Volver a tenerlos!
                      ¡Y cuando me acuerdo me pongo a llorar...!”

Nos últimos anos, o tango vem sendo motivo central de vários filmes que enfocam a dança, ressaltando sua atração misteriosa.
Na verdade, para mim, os tangos são uma espécie de porre musical, que a gente gosta de tomar de vez em quando.

Washington Luiz Bastos Conceição



Suplemento:

Como ilustração da crônica, os leitores poderão ouvir alguns dos tangos que selecionei no Youtube e relaciono abaixo, indicando os respectivos links. Nessa seleção, procurei alguns números musicais e intérpretes que mencionei na crônica e, como aconteceu com os boleros, fui surpreendido com as gravações de intérpretes de gerações recentes. Em geral, são áudios, mas há algumas apresentações com slides e vídeos.

“Tiempos Viejos”, com Mercedes Simone.

“Caminito”, com Plácido Domingo

“Yira yira”, com Carlos Gardel

“Balada para um loco”, com Amelita Baltar

“Uno”, com Hugo del Carril

“Nostalgias”, com Libertad Lamarque

“Alma del Bandoneon”, com Francisco Canaro e sua Orquestra


“Poema”, com os bailarinos Sergey Kurkatov e Yulia Burenicheva e a orquestra típica "Solo Tango".


“A media luz”, com Carlos Gardel

“En esta tarde gris”, com a orquestra de Anibal Troilo

“Cambalache”, com Enrique Santos Discépolo

“Adiós, muchachos”, com Germán Vega ao acordeom

“Percal”, com Mercedes Simone

“Volver”, com Carlos Gardel

“La cumparsita”, com a Orquesta Típica de Tango Band-O-Neon



5 comentários:

  1. Washington, não imaginava que você é um profundo conhecedor do tango.
    Estive várias vezes em BA a serviço e o local preferido nos anos 60 acho que que era o Viejo Armazen que ainda funcionava até nos inicios de 80.
    Talvez embolei o nome mas eram estadias memoráveis. Nos anos 80 fui com um grupo de Marketing e havia uma funcionária da Venezuela na reunião. Bem fomos a este local famoso e a moça começou a cantar tango que fez todo restaurante aplaudir.
    Belas lembranças .....Heinz

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  2. Minha mãe adorava boleros e tangos... cantava bem em espanhol sem nunca ter aprendido, tinha bom ouvido. Já meu pai gostava de uma série de discos chamada Metais em Brasa, que aprendi a gostar de tanto que escutei na minha infância...

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  3. De D.Izette, mãe de minha nora Adriana:
    Bom dia, Washington. Depois de ler a sua crônica, da qual, aliás, gostei muito, quero dizer que eu sou do tempo do Bolero, mas aprecio, também, o Tango, principalmente o ”La Cumparsita” que eu tocava no piano!!! Boas recordações! Abraços para Leilah e para você.

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  4. Do primo Luiz Cezar:
    Ri muito com o arremate da sua crônica "...para mim, os tangos são uma espécie de porre musical, que a gente gosta de tomar de vez em quando". Essa foi ótima.
    Mas eu, particularmente, não resisto a tomar esse porre mais vezes.
    À sua preciosa lista eu teria muitos outros memoráveis tangos a incluir, como Por Una Cabeza, Amargura, El Dia en que me quieras... e vai por aí.
    Gostaria de ter tido oportunidade de conversar com o saudoso tio Osmar sobre as experiências dele naquela época em que, pianista, bom dançarino e amante do estilo, sentiu as vibrações sensuais do ambiente em que o tango pulsava intensamente.
    Muito agradável e envolvente a crônica.

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  5. Do primo Ruy:
    Oi, Washington, muito boa crônica.
    Lembro ainda de alguns tangos como Uno, Volver, A media luz, Mi Buenos Aires querido, El Choclo, enquanto trago duas historinhas pertinentes.
    1. O grande Carlos Gardel tinha como parceiro o compositor Alfredo Le Pera, na verdade Alfredo Pereira, jornalista nascido em São Paulo em 1900 e falecido na Colômbia precocemente em 1935. Conta -se que a dupla, em certa ocasião, precisou desviar o caminho de sua viagem para o sul e foi bater em Guarapuava. Cantaram na zona da cidade onde Le Pera tomou um porre e foi levado à casa de um advogado local, onde dormiu tanto que perdeu a condução para casa.
    2. Sempre achei que os tangos clássicos tinham que ser cantados e tocados de um jeito só. Por isso, quando me recomendaram o disco de tangos de Julio Iglesias achei que era brincadeira. Considerava-o um cantor mediano de boleros idem. Para minha surpresa, esse seu trabalho só merece elogios. Trata-se de uma incrível experiência com o que se poderia chamar de tango-bolero ou tango "abolerado". Quem disse que seria algo desprezível? Interpretação criativa, voz adaptada a um estilo agradável, arranjo instrumental seguro e impecável. Claro que o ouvinte precisa se "desligar" da versão tradicional. Vale a pena conferir.

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