Cara leitora ou prezado leitor:
Esta é a décima crônica da série “D. Izaura e sua
gente”. Prossigo com as histórias.
Na crônica de introdução da série escrevi:
“Conheci meu amigo Sérgio Bastos quando, aos
quinze anos, em São Paulo, passei do Ginásio Estadual do Ipiranga para o
Colégio Estadual Presidente Roosevelt para fazer o curso colegial científico,
que me prepararia para a universidade.
As aulas do colégio eram no período da manhã.
Na época de provas, nós estudávamos, à tarde, na casa dele, que ficava a dez
minutos, a pé, do Colégio. Minha casa ficava em um bairro afastado, distante do
colégio uma hora, viajando de bonde. Naqueles dias, eu almoçava na casa dele,
onde moravam várias pessoas da família: seus avós maternos, seus pais, tios e
um primo.”
Em crônicas anteriores , contei assim como
aconteceu formarmos a dupla, que mantivemos até nos formarmos engenheiros:
“Desde o primeiro ano do colégio, o desafio dos
estudos e dos trabalhos, principalmente de Matemática mas também de outras
cadeiras, fazia com que vários colegas buscassem estudar em duplas. Acabei
formando dupla com o Sérgio.
No primeiro ano do curso, chamado “Científico”,
foram formadas no colégio quatro classes (A, B, C e D), separando os alunos por
ordem alfabética do primeiro nome. O “W”, inicial de meu primeiro nome, me
levou à classe D. O mesmo aconteceu com aquele que seria meu colega por 8 anos,
porque sua inicial era “S”. O Sérgio Bastos, vindo de outro ginásio estadual,
se tornou meu parceiro de estudo; os dois colegas mais chegados a ele, no
Ginásio, também passaram para o Roosevelt, mas suas iniciais eram, respectivamente,
“E”, de Edison e “M”, de Milton. Se um deles se chamasse Renato, por exemplo,
nossa parceria, provavelmente, não teria
acontecido.
Ele era muito estudioso, muito bem-preparado na
Escola Caetano de Campos, já estudava Inglês e Francês em escolas
especializadas; eu era bom aluno, embora com menos preparo do que ele nesses
idiomas. Em Português, nosso conhecimento era equivalente e eu conhecia mais o
Espanhol. Nossa dupla iria durar os três anos de colégio, um ano de cursinho
pré-vestibular (concomitante com o terceiro), mais os cinco anos do curso de
Engenharia. Embora, na profissão, tenhamos seguido caminhos diferentes,
mantivemos a amizade, por várias razões; entre outras, porque me casei com a
prima dele.”
Enfrentamos muito bem as dificuldades do curso no
colégio Roosevelt, famoso por exigir muito do aluno. Em especial, o professor Cruz,
de matemática, era temido por seu método de ensino, que requeria dedicação
extrema dos estudantes para evitar a reprovação. Nosso relacionamento com ele
foi melhorando à medida que avançávamos no curso com bom desempenho e ele nos
conhecia melhor. Terminamos com muito boas notas e o temor inicial se
transformou em um relacionamento amigável, com muito respeito.
Desde o início do científico, fortemente
envolvidos com Matemática, Física e Química, Sérgio e eu estávamos inclinados a
fazer Engenharia, como, aliás, a maioria da turma. Porém, no segundo semestre
do segundo ano, ao planejarmos fazer o curso de preparação para o vestibular –
o Cursinho – o Sérgio, discutindo o assunto com a família, chegou a considerar
fazer Medicina, pois havia a perspectiva do apoio do tio doutor para seguir a
nobre profissão e, na matéria Ciências Naturais, também tínhamos muito boa preparação.
Porém, ao passarmos para o terceiro ano do colégio, Sérgio decidiu seguir mesmo
Engenharia. Ambos, então, fizemos o Cursinho do Colégio Anglo-Latino, muito
conceituado, concomitantemente com o terceiro ano do científico, com o objetivo
específico de enfrentarmos o vestibular da Escola Politécnica da Universidade
de São Paulo, a Poli.
Corria o ano de 1950, certamente um dos anos mais
ocupados de nossa vida de estudantes. Em resumo, tínhamos muito pouco tempo
para lazer – um mínimo de cinema, futebol, festas. Por exemplo, da copa do
mundo de futebol realizada no Brasil, a primeira após a segunda guerra,
apenas acompanhamos os resultados dos
jogos.
O edifício do Anglo-Latino era também bem próximo
do sobrado, na mesma rus do Colégio, e o horário, se bem me lembro, era das 19
às 21 horas. Tínhamos, portanto, aula pela manhã no Colégio, estudávamos à
tarde e íamos ao Cursinho à noite.
Normalmente, eu ia para casa na hora do almoço e voltava à noite, mas em época
de provas me mudava, praticamente, para o sobrado. Cheguei a propor pagar pela
hospedagem, mas minha proposta não foi levada em consideração. Aliás, essa
acolhida na ocasião das provas iria se estender aos anos do curso na Poli.
O sobrado, à tarde, era muito sossegado.
Permaneciam em casa, habitualmente, D. Izaura, Seu Juca e D. Glória, mais as
empregadas. Sérgio e eu estudávamos no escritório do Doutor, que estava no seu consultório, no centro da cidade. Fazíamos um intervalo lá pelas cinco da tarde, quando costumávamos
tomar um chá com D. Izaura e conversarmos um pouco com ela que, depois,
escutava sua novela no rádio. Seu Juca acompanhava, de vez em quando, nossa
leitura de pontos de Ciências Naturais – e comentava.
Em ocasiões de muita carga de estudos, o que
aconteceu com frequência no terceiro ano, ainda estendíamos os trabalhos para
depois do jantar.
Concluído o curso colegial com ótimo desempenho (modéstia à parte), partimos para a reta final da preparação para o vestibular, no cursinho e em casa, mais o trabalho de inscrição no exame da Politécnica. Não me recordo de cerimônia de formatura, além das despedidas no Colégio, com sessões de fotos da turma com os professores.
A turma do terceiro ano do Colégio – Assinalados: Washington e Sérgio
As aulas do cursinho prosseguiram até as vésperas
do exame.
Os exames vestibulares daquele tempo não eram
unificados e o da Poli era considerado, em São Paulo, o mais difícil na área de
Engenharia. Pela fama da Escola e pelo fato de ser da Universidade de São Paulo, pública portanto, a
quantidade de candidatos inscritos era muito alta para os padrões da época – em
nosso caso, foram mais de 800 candidatos para cerca de 150 vagas. O exame era
geral e as especializações (Engenharia Civil, de Mecânica e Eletricidade, de
Química e de Minas e Metalurgia) eram definidas depois da aprovação.
A novidade daquele ano (1951) acrescentarem ao vestibular as provas (escrita e oral) de Português, cujo grau de dificuldade não tinha histórico. Incluía literatura, além de gramática e redação. Nossa base do Colégio era boa e o cursinho conseguiu orientar-nos, mas tivemos de ler livros dos escritores portugueses e brasileiros mais destacados. Dos autores em língua portuguesa, Sérgio tinha lido, principalmente, Eça de Queiroz e eu, Érico Veríssimo. Ambos, Monteiro Lobato, claro, quando éramos crianças, além de antologias e algumas obras de nossos principais poetas. Eu escolhi ler, para o exame, livros de Machado de Assis, de Eça de Queiroz e de Alexandre Herculano.
Como o exame seria feito logo após o Carnaval,
tivemos de estudar alguns dias em minha casa na Vila Olímpia, para onde minha
família tinha acabado de se mudar. Aconteceu que não tínhamos condições de
estudar no sobrado com o barulho dos blocos se preparando na rua Galvão Bueno.
Bem, chegou o dia da exclamação “Alea jacta est” e partimos para a luta. Entre exames escritos seguidos dos orais, foram uns quinze dias, pelo menos. A correção das provas eliminatórias de Desenho e Matemática era draconiana – no desenho geométrico, por exemplo, a correção era feita por superposição de transparência sobre o desenho do candidato e a precisão tinha de ser total; na prova de Matemática, o desenvolvimento correto das questões não era levado em consideração; se o resultado não fosse exato, a questão levava zero. Fiquei sabendo depois que eles tinham de cortar o máximo de candidatos desde o início porque, no caso de aprovação acima das vagas disponíveis, a Escola poderia ter problemas de reinvindicações na justiça. Na realidade, portanto, tratava-se de um exame de seleção, de modo que a classificação do candidato até o limite de vagas era o que determinava sua aceitação.
Com as notas que tínhamos obtido, esperávamos o
resultado com otimismo, mas, melhor ainda, nossa classificação foi excelente. A comemoração em
minha casa e no sobrado foi geral!
Não me lembro de festejos no sobrado, mas tivemos, Sérgio e eu, uma surpresa. Ele me contou: “Uma notícia, Washington: temos de ir a Aparecida (Aparecida do Norte, em São Paulo) pagar uma promessa que a Vó Izaura fez. Tudo bem?”. Topei, claro, prontamente. Em um sábado, bem cedo, fomos os dois de ônibus até Aparecida, rezamos na Basílica agradecendo a ajuda, e voltamos no mesmo dia.
O Sérgio ainda comentou: “Sabe Washington, até que tivemos muita sorte, porque minha avó já fez uma promessa tal que a pessoa beneficiada pela graça teve de ir a uma igreja e, de joelhos, percorrer da porta ao altar.”
Hoje, depois de tantos anos, lembro-me de que D. Izaura, durante nossa fase de preparação, não se mostrava preocupada com nosso exame. Até me parece que ela falava assim "com seus botões": "Os meninos são inteligentes e estão estudando; com a ajuda de Nossa Senhora Aparecida, eles certamente serão aprovados".
Washington Luiz Bastos Conceição
Nota:
Cara leitora ou prezado leitor: para ler
quaisquer das nove primeiras crônicas da série, clique nos respectivos links
abaixo:
1) D. Izaura e sua gente – Introdução
https://washingtonconceicao.blogspot.com/2025/02/d-izaura-e-sua-gente-introducao.html
2) D. Izaura e sua gente – A casa e os moradores
https://washingtonconceicao.blogspot.com/2025/03/d-izaura-e-sua-gente-casa-e-os-moradores.html
3) D. Izaura e sua gente – Leilah na Galvão Bueno
https://washingtonconceicao.blogspot.com/2025/04/d-izaura-e-sua-gente-leilah-na-galvao.html
4) D. Izaura e sua gente – Vovô Juca
https://washingtonconceicao.blogspot.com/2025/05/d-izaura-e-sua-gente-vovo-juca.html
5)
D. Izaura e sua gente – Apresentando as pessoas – 1
https://washingtonconceicao.blogspot.com/2025/06/d-izaura-e-sua-gente-as-pessoas-1.html
6) D. Izaura e sua gente – Apresentando as pessoas
– 2
https://washingtonconceicao.blogspot.com/2025/07/d-izaura-e-sua-gente-apresentando-as.html
7) D. Izaura e sua gente – O baile do Odeon
https://washingtonconceicao.blogspot.com/2025/07/d-izaura-e-sua-gente-o-baile-do-odeon.html
8)
D. Izaura e sua gente – Lembranças do Gentil
https://washingtonconceicao.blogspot.com/2025/08/d-izaura-e-sua-gente-lembrancas-do.html
9) D. Izaura e sua gente – Festinhas no sobrado
https://washingtonconceicao.blogspot.com/2025/09/d-izaura-e-sua-gente-festinhas-no.html
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