Caro leitor ou prezada leitora:
Prossigo em meu programa de lhe oferecer mais
de meus escritos neste tempo de isolamento social. Desta vez, considerando a
gentil recepção dos leitores às crônicas sobre boleros e tangos, trago a
história de meu interesse por óperas, transmitido pelo meu pai, grande
apreciador da música lírica.
Apresento-lhe a transcrição de mais uma parte
do capítulo “A música e eu” de meu primeiro livro, o “Histórias do Terceiro
Tempo”, publicado em 2009.
Dedico esta publicação a meu pai, seus contemporâneos
que transmitiram aos filhos o gosto por suas músicas preferidas e,
especialmente, aos imigrantes italianos e seus descendentes que nos trouxeram o
hábito de apreciar o “bel canto”.
Introdução
Nunca estudei música, não tenho bom ouvido e,
quando tento cantar, desafino. Enfim, sou um ignorante que, humildemente, gosta
de ouvir vários gêneros de música: desde marchinhas de carnaval, sambas, bossa
nova, música brasileira em geral, boleros e tangos, até óperas e música
clássica. Variado, não é?
Vocês poderão dizer: “Caramba (ou outra
interjeição que costumem usar mais), Washington, deve ser tudo o que os seus
contemporâneos curtiram ao longo da vida – qual é a novidade?”.
Óperas, meu pai e eu
É pouco provável que a maioria de vocês goste de
ópera ou, mesmo, que se interesse pelo assunto. A ópera carrega a fama de ser
um espetáculo em que a heroína é uma mulher gorda pela qual o herói e o vilão
estão apaixonados e travam duelo de morte; estes tampouco correspondem
fisicamente aos personagens jovens e impetuosos do drama. Apesar de realmente
acontecer com frequência esse contraste entre a aparência de cada artista e de
seu papel, suas vozes e o espetáculo como um todo se sobrepõem a essa
característica, que se torna um detalhe de pouca importância. Embora não seja
conhecedor de música lírica, apenas alguém que a aprecia, ouve e assiste a
óperas de vez em quando, tenho aqui alguma coisa para contar e comentar.
Sempre que vou a Nova York, procuro visitar o
Lincoln Center para assistir a algum espetáculo artístico em um daqueles
teatros maravilhosos. Quando há uma apresentação de ópera no Metropolitan Opera
House, não perco, mesmo que tenha de subir à galeria lá no alto.
Tive o prazer de levar, ao Metropolitan, Leilah e
Jurema, minha filha, então com doze anos. Fomos assistir a “Il Trovatore”, uma
das minhas óperas prediletas. O teatro, grandioso, moderno, muito bonito; o
público, elegante e bem comportado; os cenários, a orquestra, os cantores,
perfeitos. As árias mais famosas eu conhecia bem, dos discos, e vibrei em
ouvi-las ao vivo, como parte do espetáculo teatral completo. Minha satisfação
foi triplicada pelo interesse e a satisfação delas, desde o “Alerta!. Alerta!”
ao “Miserere”, com destaque para o brilhante coro dos ferreiros. Inesquecível!
O gosto pelas óperas, assim como pelo tango,
também me foi passado por meu pai. Morar em São Paulo ajudou muito, pois, além
das temporadas no Teatro Municipal, havia sempre programas de música lírica nas
rádios, especialmente na Rádio Gazeta. A preferência dele era por Verdi, de
modo que tínhamos em casa discos com várias árias da Traviata, Otelo, Il
Trovatore, Un Balo in Maschera, Aída, Rigoletto, além de algumas das mais
famosas de outros autores.
O que vocês acham que eu fazia quando tocava os
discos em casa, especialmente quando estava sozinho, de bobeira? Acho que
adivinharam: tocava as árias, de preferência do barítono, e procurava
acompanhá-lo, de libreto na mão. Era uma pauleira para mim e para os vizinhos,
mas eu me divertia e aprendia para futuros gastos; meu pai morria de rir. Meu
desafio preferido era a ária “Credo in un Dio crudel”, do Otelo, interpretada pelo
Iago, o terrível vilão da história, com versos e música muito fortes.
Nessa época (início dos anos 1950, eu tinha uns
vinte anos), fui assistir com meu pai ao Otelo, no Teatro Municipal de São
Paulo, o qual apresentava anualmente temporadas com récitas de qualidade, com
grandes cantores e músicos italianos. Os principais intérpretes de Otelo
naquela noite foram, que eu me lembre, Mario del Monaco, tenor, Elizabeta
Barbato, soprano, e Enzo Mascherini, barítono, que arrancaram “Bravos” da
audiência, italianos e descendentes em sua grande maioria. Ainda assim, parece
que o Mascherini cometeu alguma falha, imperceptível para mim, e um dos meus
vizinhos de cadeira comentou com o outro: “Você viu que frango deu
Mascherini?”.
Depois da fase de estudante, não perdi meu gosto
por óperas, mas não ouvi mais música lírica com regularidade e minhas idas ao
teatro para assistir a óperas foram poucas, embora marcantes.
Dez anos antes de ver o Trovatore, em Nova York,
Leilah e eu tínhamos assistido à Aída, em Roma, nas Termas de Caracala,
espetáculo muito bonito, com um cenário grandioso. Porém, visto de longe e ao
ar livre, em uma noite um tanto fria do verão italiano, não pude apreciá-lo
devidamente. Valeu pelo inusitado.
Mais inusitado ainda foi o caso da ópera a que
fomos assistir no Municipal do Rio, por volta de 1980, Leilah e eu, em companhia
do Roberto Castro Neves, grande amigo e colega da IBM, e Dóris, sua esposa. Era
uma temporada com cantores italianos, que eu me lembre não dos mais famosos,
mas estava agradando. A ópera era a Tosca, hoje minha predileta. Tarde quente
do Rio, o Municipal cheio, conseguimos um bom lugar e tivemos um bom primeiro
ato. Veio o intervalo, aproveitamos para bater um bom papo, mas o tempo foi
passando e nada de recomeçar o espetáculo. Depois de uns vinte minutos de
atraso, avisaram pelo alto-falante que estava havendo um problema qualquer, mas
que logo seríamos chamados para o segundo ato – e tome mais atraso. Finalmente,
chamaram os espectadores e acabaram explicando que os cantores italianos se
recusaram a continuar com a ópera porque não tinham recebido o pagamento
combinado. Os produtores foram buscar às pressas um soprano e um tenor
brasileiros (no meu tempo de futebol de várzea, isso se chamava laçar) que
deram prosseguimento ao espetáculo. A soprano era boa, conhecida, e não
decepcionou, dadas as circunstâncias, mas o tenor teve um desempenho mais
fraco. Contaram, porém, com a boa vontade e a simpatia do auditório e,
importante, levaram a ópera até o fim.
Mais recentemente, e já faz dez anos – para os
mais velhos os anos passam cada vez mais depressa – voltamos ao Metropolitan
para assistir à Turandot, de Puccini. Desta vez, somente Leilah e eu. O teatro,
magnífico como sempre, orquestra, cenário, intérpretes de primeira linha. Eu
não conhecia o enredo e fiquei um tanto decepcionado, pois parece história
infantil do folclore chinês. Mas a música é muito bonita, os cantores foram
ótimos e o cenário genial. Tive apenas uma dificuldade de aceitação: a soprano,
voz magnífica, era do tipo grande e gorda, e sua personagem é a “principezza”!
“E agora?” Vocês poderão perguntar. “Você tem
assistido a óperas? Ainda gosta dessa música de antigamente?”
Agora, respondo, nesta vida preguiçosa de idoso, o
que faço é ouvir, de meus discos, algumas óperas e árias diversas, inclusive da
série dos três tenores, e assistir a DVDs que ganhei do Cássio e do Ron, sogro
dele.
Nessas sessões, tenho uma sensação diferente,
mescla da apreciação de uma forma de arte diferente, pouco comum em nossa mídia
em geral, e das reminiscências que ela evoca.
Suplemento:
Como
ilustração da crônica, os leitores poderão ouvir algumas das árias e aberturas que
selecionei no Youtube e relaciono abaixo, indicando os respectivos links. Nessa
seleção, procurei vídeos de árias e aberturas mais conhecidas que costumávamos ouvir lá
em casa e outras que passei a ouvir mais tarde.
https://www.youtube.com/watch?v=K078WJGmivo
3. La Traviata - Brindisi - Pavarotti
https://www.youtube.com/watch?v=pu7zWrIMV_g
4. Norma – Casta Diva – Maria Callas
https://www.youtube.com/watch?v=TYl8GRJGnBY
5. Otelo - Credo in un dio crudel - Tito Gobbi
https://www.youtube.com/watch?v=1SWYKIN41WQ
6. I Pagliaci – Vesti la giubba – Plácido Domingo
https://www.youtube.com/watch?v=1hxonfpfuTY
7. O Barbeiro de Sevilha – Abertura – Orquestra Sinfônica do Rio Grande do Norte
https://www.youtube.com/watch?v=9W0tZ1F68pA
8. Aida – Marcha Triunfal - Lund International Choral Festival 2010 – Suécia – Regente: Roger Andersson
https://www.youtube.com/watch?v=ns_xsduwI-E
9. La Traviata – Abertura - Istanbul State Opera – Regente: Raoul Grüneis
https://www.youtube.com/watch?v=EVNRxiof298
10. Il Trovatore – Coro di gitani – Stride la vampa - Cristina Vincenzi e o coro "Le voci di bonavicina”
https://www.youtube.com/watch?v=o5nalsW2sMw&list=TLPQMjMwNTIwMjBFQTR7isdg7Q&index=4
11. Turandot - Nessum dorma – Pavarotti (espetáculo em Londres, que ele encerra com a canção “Torna a Surriento”)
https://www.youtube.com/watch?v=S8F-lenWkIo
12. Madame Butterfly – Un bel di vedremo – Renata Tebaldi
https://www.youtube.com/watch?v=1woH96ROG-c
13. O Barbeiro de Sevilha – Largo al factotum – Dmitri Hvorostovsky e Orchestre symphonique de Montreal.
https://www.youtube.com/watch?v=TKDXr_fimQ8
14. Aída – Celeste Aída – Andrea Bocelli
https://www.youtube.com/watch?v=AYfTZjRDaCI
15. Rigoletto – La donna è mobile – Os três tenores (Pavarotti, Plácido Domingo e José Contreras)
https://www.youtube.com/watch?v=a8-vZJNY10k
16. Cavalleria rusticana – Intermezzo – Orquestra Sinfônica Evergreen – Regente: Lim Kek-tjiang
https://www.youtube.com/watch?v=7OvsVSWB4TI
17. William Tell – Abertura – Orquestra Sinfônica de Milwaukee – Regente: Edo de Waart
https://www.youtube.com/watch?v=YIbYCOiETx0
Do primo Ruy: Bem interessante, Washington. Você diz modestamente gostar "até de óperas", mas ouviu e assistiu a várias, no Brasil e no estrangeiro, revelando bom gosto e familiaridade um tanto incomuns nessa área. Para exemplificar, passei boa parte da vida envolvido com música e só vi duas óperas inteiras, e em vídeo, Madame Butterfly, de Puccini, e o Barbeiro de Sevilha, de Rossini. No mais, reconheço alguns trechos daquelas consagradas e com os tenores, barítonos e sopranos mais famosos. E olhe lá! Ignorava ou não sabia da extensão de seus conhecimentos em tão expressivo quanto requintado gênero teatral e musical.
ResponderExcluirRuy:
ExcluirNa verdade, tive as oportunidades que relatei, mas o pouco que conheço devo à influência de meu pai. Muito obrigado pela atenção e pelo comentário.
Não posso dizer que sou fã de óperas. Mas quando estudava no primário, minha escola levou a turma para assistir o ensaio geral do Barbeiro de Sevilha no Municipal... Digo que foi uma experiência que nunca esqueci.
ResponderExcluirDa prima-sobrinha Lígia, que mora na Alemanha:
ResponderExcluirTio @Washington eu fui a muitas óperas quando era criança com minha avó e meu pai. E algumas vezes mais tarde no Municipal. 2 ou 3 vezes fui aqui na Europa também - quase toda cidade grande tem um teatro e um elenco fixo... também gosto do espetáculo e da música - mas muito raramente ouço opera ou lírico sozinha em casa. Eu conheci aqui o primeiro tenor brasileiro a vir para Alemanha. Aldo Baldin, de Santa Catarina. E dei aula para outros dois de quem não lembro do nome. Quem sabe não vamos juntos, num momento menos conturbado que o atual ... beijo.
Muito bom, Washington! Eu gosto de opera mas não tanto assim... Seu escrito me provocou duas lembranças. Uma de 1974, por ai, eu entrevistei um AS americano candidato a um assignment no Rio (IBM). A coisa ia bem até que ele me perguntou quantos teatros de ópera havia no Rio... só um, respondi, e ele gentilmente disse que não podia aceitar o assignment aqui, pois gostava de opera na base de uma por semana, o que conseguia em New York com suas varias casas! A outra lembrança foi quando mencionou Turandot... em conversa com um sobrinho eu disse que gostava do Nessum Dorma... e ele me presenteou com uma coleção completa de CDs do Turandot. Que tenho bem guardada por aqui, com a dificuldade hoje de ouvir CD...
ResponderExcluirDe D. Isette, mãe de minha nora Adriana:
ResponderExcluirBom dia Washington e obrigada por mais uma viagem no nosso tempo! Não sou conhecedora e nem amante de Ópera,mas aprecio mto certos trechos, principalmente os usados em filmes que você mencionou... Lindos! Continue com suas crônicas... eu gosto muito. Abraços para Leilah e para você.