Cara leitora ou prezado leitor:
Retomo a série de crônicas com transcrições do
capítulo “A Música e Eu” de meu livro “Histórias do Terceiro Tempo”, publicado
em 2009. Com a série, que continua tendo muito boa aceitação pelos meus
generosos leitores, pude intensificar a publicação de crônicas no blog, com o
objetivo de oferecer distração aos amigos nesta fase tão difícil do isolamento
social. Nesta crônica, como fiz na publicação das demais da série, incluo um
suplemento com os links de áudios e vídeos de números musicais selecionados.
Segue a transcrição.
“Bossa Nova – Leilah e eu
Corria o ano de 1958. Leilah e eu, já noivos,
estávamos, no carro do pai dela, subindo a Avenida Rebouças, em São Paulo, rumo
à sua casa no bairro do Pacaembu. No rádio do carro começou a tocar uma música
nova. Leilah disse qualquer coisa como: “Você já ouviu esta música? É
diferente, engraçada, preste atenção!”.
Era mesmo diferente. O cantor, que eu não conhecia, entoava:
“... pois há menos peixinhos a nadar no mar
do que os beijinhos que darei em sua boca...”
Era, realmente, algo novo para mim: não era um
samba-canção, que requeria vozes potentes, nem um samba brejeiro, urbano, como
aqueles do Caymmi, nem as canções algo jazzísticas interpretadas principalmente
pelo Dick Farney. Era agradável, leve,
animada, maliciosamente romântica.
Claro, vocês já sabem, era o “Chega de
Saudade”, com o João Gilberto, meu primeiro contato com o tipo de música depois
consagrado como “Bossa Nova”, denominação extraída da letra de “Desafinado”,
outro grande sucesso. Ambas foram marcos do que viria a ser um notável e
duradouro movimento musical que se espalhou pelo mundo inteiro, com “Garota de
Ipanema” sendo seu maior sucesso.
A partir de então, as músicas da Bossa Nova
vieram enriquecer o rol de minhas preferências musicais, o que aconteceu com a
Leilah, Penha, minha irmã, e os amigos. Gostávamos muito de ouvir intérpretes
como, por exemplo, Nara Leão, Silvinha Teles, Elisete Cardoso, Agostinho dos
Santos, além do João Gilberto e dos próprios compositores, Tom, Vinicius, Chico
Buarque...
Designado pela IBM para um projeto nos Estados
Unidos, mudei-me com a família para Chicago em 1968.
No grupo em que trabalhei – formado por
americanos e estrangeiros – um dos participantes, americano, era o artista
(designer), encarregado de todas as ilustrações do material de Marketing e
Instruções que estávamos desenvolvendo. Jovem, simpático, James Kelly, ao saber
que eu era brasileiro, fez questão de me contar que era fã de Bossa Nova, era
admirador de Tom Jobim e colecionava seus discos. Foi por ele que fiquei
sabendo da parceria do Tom com o Frank Sinatra, que resultou numa ótima
gravação pelo americano de várias músicas de Bossa Nova em Inglês. Optei pela
gravação em fita de rolo, em função do primeiro equipamento de som que tínhamos
comprado, e comprei também um rolo do Sérgio Mendes 66 e outro do Walter
Wanderley Trio. Depois, equipados também com um som de toca-discos, passamos a
ouvir Laurindo Almeida, Aretha Franklin, Louis Armstrong, Ella Fitzgerald e
outros. Ouvimos muito essas músicas na temporada em Chicago – aqueciam o
inverno e animavam nossas reuniões com amigos.
Morando longe do centro de Chicago e com três
crianças, não era fácil irmos ao teatro ou assistirmos a apresentações musicais
em Chicago. Entretanto, quando o Bola Sete fez uma temporada em um dos bares de
lá, fomos assistir ao seu show. Matamos a saudade da música brasileira ao vivo,
pois, apesar das caretas incríveis que ele fazia quando tocava, era ótimo
violonista e tinha um repertório excelente.
Uma surpresa que tivemos (lembrem, o ano era
1968!) foi a inclusão da bossa nova nas músicas de fundo dos shopping centers,
especialmente de “Garota de Ipanema”. Aliás, continuam tocando até hoje – só
que não é mais surpresa para ninguém.
Quando voltamos ao Brasil, mudamo-nos para o
Rio – e caímos no epicentro da Bossa Nova. Outras músicas, brasileiras e
estrangeiras, tiveram grande destaque na década de 1970, mas a Bossa Nova se
mantinha muito viva junto ao público. Em nosso caso, particularmente, passamos
a aproveitar também de outra forma: assistindo a shows de Vinicius, Tom, Baden,
Toquinho, Chico Buarque, Elis, Gal Costa, Elisete, Tito Madi, Marisa Gata
Mansa, Ribamar, João Roberto Kelly.
Como curiosidade adicional, encontrávamos os
artistas em locais públicos e restaurantes. Nos primeiros meses de meu trabalho
no Rio, quando a família estava em São Paulo, eu ficava em hotel no Rio e
viajava toda sexta noite para São Paulo e voltava na segunda. Saturado de avião
e fugindo das dificuldades da Ponte Aérea, preferia ir de trem, que era mais
barato e mais confortável. Antes de me deitar, jantava no carro restaurante,
onde várias vezes encontrei o Ciro Monteiro (sambista veterano, foi o melhor
intérprete de “Formosa”). Muito simpático e comunicativo, ele estava sempre
cercado de amigos para um papo alegre.
Ao mudarmo-nos para o Rio, em janeiro de 1970,
tivemos uma dificuldade usual naquele tempo: custou para conseguirmos nosso
telefone residencial. Assim, para falarmos com a família em São Paulo, tínhamos
de ir ao posto da Companhia Telefônica na Praça General Osório em Ipanema (já
morávamos no Leblon). Mais de uma vez encontramos o Baden Powel no posto –
quieto, esperando como nós sua vez para telefonar. O Chico Buarque e o Baden
foram os artistas que mais encontramos: o primeiro, sempre andando muito
rápido, não encorajava ninguém a pedir autógrafo; o segundo, encontramos mais
em restaurantes; pedimos seu autógrafo duas vezes – a primeira para os meninos
e a segunda, mais recentemente, para minha mãe, quando almoçávamos num
restaurante de frutos do mar na Barra da Tijuca, o preferido dela aqui no Rio.
Continuo curtindo a Bossa Nova, mediante CDs e
DVDs. Ela pertence, agora, à categoria recordações, mas é muito bom ouvir o
Baden, solando o “Poema dos Olhos da Amada” e Tom, Vinicius e Elis, por
exemplo, nos diversos discos que vimos colecionando por todos estes anos, todos
excelentes. Ou, ainda, assistir novamente ao documentário ”Vinicius” em DVD,
muito divertido.
A Bossa Nova continua comigo, inesquecível.”
A bossa nova encantou, durante anos, o mundo todo
e mais de uma geração de brasileiros. Porém, ao escrever o livro, eu estava
lembrando mesmo era daquela extraordinária fase da música brasileira em que,
realmente, a bossa nova predominou, mas outras correntes musicais fizeram,
também, muito sucesso. Alguns compositores e cantores chegaram a participar de
mais de um movimento. Eu (e, provavelmente, o público em geral) não me
preocupava em saber exatamente se alguma peça musical era ou não bossa nova.
Exemplos: a música de Jorge Ben (depois Ben Jor) era diferente, mas igualmente
apreciada; Chico Buarque compunha e interpretava canções e sambas que podiam
ser ou não bossa nova. Outros sucessos populares, claramente fora das
características da bossa nova, evoluíam paralelamente, a os números até se
misturavam em shows. Era o caso das músicas de Caymmi, que continuava, como fez
a vida inteira, com suas canções e sambas, e as músicas da Jovem Guarda, que
tinha seu grande público. Tudo muito bom e misturado.
O que mais me impressiona ao recordar aqueles anos
de nossa música é a quantidade de artistas de talento extraordinário, compondo,
cantando, gravando, se apresentando em shows memoráveis. Shows como o “Dois na
Bossa”, com Elis Regina e Jair Rodriques; aqueles do Wilson Simonal, que
conseguia fazer vibrar grandes plateias com um arranjo de “Meu limão, meu
limoeiro”, música antiga do folclore que se ensinava a crianças; os shows de
pura bossa nova, com Vinicius, seu copo de whisky, Baden, Tom e, também, Toquinho; espetáculos como os Saltimbancos, de Chico Buarque e companhia;
apresentações em teatro de Gal e Bethania (cantando Balancê, Mãe menininha e
outros sucessos). E ainda não mencionei nomes como Edu Lobo, Carlos Lira, Gilberto
Gil, Caetano Veloso e certamente mais uma dezena deles, pelo menos. A lista dos
grandes artistas é infindável.
Quem conseguiu, com muita felicidade, fazer menção
a uma lista extensa de vários de nossos artistas mais destacados, foi Chico
Buarque, em sua toada “Paratodos”.
Chega de saudade? Não, quando a saudade é a daqueles
tempos de nossa música popular, que permanece e é muito gostosa. Para
atenuá-la, basta tocar alguns daqueles discos excelentes, recostar-se na
poltrona e deleitar-se com o som e a poesia de nossos admiráveis artistas.
Washington Luiz Bastos Conceição
Suplemento
Como ilustração da crônica, os leitores poderão
ouvir algumas das músicas que selecionei no Youtube e relaciono abaixo,
indicando os respectivos links. Na seleção, considerei peças musicais e
cantores que mencionei no texto, preferindo os áudios aos vídeos quando o som
me pareceu melhor; também incluí alguns shows que apreciei muito.
Resultou um extenso cardápio, o que não quer dizer
que estou sugerindo que os leitores ouçam todos de uma vez. Provavelmente, como em um
restaurante, vocês examinarão toda a lista (o que recomendo) e escolherão
uma entrada, o prato principal e a sobremesa, deixando outros números para a
próxima visita ao blog.
Observação: Nesta seleção, vários áudios e vídeos trazem
anúncios, que podemos pular. Esse inconveniente é o preço que pagamos pela
audição.
https://www.youtube.com/watch?v=yUuJrpP0Mak
Garota de Ipanema - João Gilberto e Tom Jobim
https://www.youtube.com/watch?v=DSJ5xZci9mI
Desafinado - Joao Gilberto
https://www.youtube.com/watch?v=g6w3a2v_50U
The Girl From Ipanema - Frank Sinatra e Antônio Carlos Jobim
https://www.youtube.com/watch?v=NldPFVKYmiw
Introdução ao Poema dos Olhos da Amada – Baden Powell
https://www.youtube.com/watch?v=4AsPgeOIars
Dois Na Bossa - Pot-Pourri - Elis Regina E Jair Rodrigues
https://www.youtube.com/watch?v=wQdO2SYHFtM
Tarde em Itapoã - Toquinho e Gilberto Gil
https://www.youtube.com/watch?v=CLOqNeCps20
Se eu quiser falar com Deus - Elis Regina
https://www.youtube.com/watch?v=ivwHnJpcU3Y
Manhã de Carnaval - Agostinho dos Santos
https://www.youtube.com/watch?v=n0W12dVKD2s
A Banda - Nara Leão
https://www.youtube.com/watch?v=i9-WscD3Xxw
Berimbau - Baden Powell e Vinícius de Moraes
https://www.youtube.com/watch?v=q-cHTXrW3J8
Águas de Março - Elis Regina e Tom Jobim
https://www.youtube.com/watch?v=BnB1G63XvCQ
Formosa - Cyro Monteiro
https://www.youtube.com/watch?v=_cizWw--yFA
Água de Beber - Maysa
https://www.youtube.com/watch?v=0B3d_p5Vquw
Samba do Avião - Tom Jobim
https://www.youtube.com/watch?v=aK-k0SstIJQ
A noite do meu bem - Maria Bethania e Quarteto em Cy
https://www.youtube.com/watch?v=418pvtvD-cE
Pra dizer adeus - Edu Lobo
https://www.youtube.com/watch?v=jHTAHkEj34U
Minha Namorada - Carlos Lyra
https://www.youtube.com/watch?v=anh8gLm8hR0
Pot-pourri - Toquinho & Vinicius
https://www.youtube.com/watch?v=14rLKxvPIx4
Das Rosas - Dorival Caymmi e Tom Jobim
https://www.youtube.com/watch?v=38NP9AQYnAE
Apelo - Elizeth Cardoso
https://www.youtube.com/watch?v=7c32uFFUbls
Balanço zona sul - Tito Madi
https://www.youtube.com/watch?v=QxC4YDslf20
Quem te Viu, Quem te Vê - Chico Buarque
https://www.youtube.com/watch?v=DPi2GvElSUQ
Mais que nada - Sergio Mendes e o Brasil '66
https://www.youtube.com/watch?v=05w5ch9l6zI
Que pena! - Jorge Ben e Gal Costa
https://www.youtube.com/watch?v=4Dhn5zUjR-0
Meu limão meu limoeiro - Wilson Simonal
https://www.youtube.com/watch?v=qoBkkFTO-Xc
Trem das Onze – Gal Costa
https://www.youtube.com/watch?v=QzWuViSIRHQ
Pot-Pourri - Elis Regina e Adoniran Barbosa
https://www.youtube.com/watch?v=FVtbveUu1To
Paratodos - Chico Buarque
Muito bom ! Não é questão de saudade é questão de ouvir uma boa música. Agradecemos pelo compartilhamento dos links das músicas. Uma senhora playlist !
ResponderExcluirBons tempos e boa música... tão boas que meu filho, nascido em 89, curtiu também... infelizmente hoje estamos órfãos de bons compositores e de boa música
ResponderExcluirWashington. Sua lista é "covardia " de tão boa e abrangente. Só sucesso da melhor qualidade. A saudade dessas músicas e de seus intérpretes continua viva. Escolhi para começar o Agostinho dos Santos por razão simples. O Gentil era sócio do Ipê Clube que eu frequentava como seu beneficiário. Clube pequeno diante do Paulistano , Pinheiros, etc. Mas tinha um bom campo de futebol e eram convidados times de fora para enfrentar os craques da casa. Eu era rapazinho e assisti ao jogo onde figurava o Agostinho no adversário. Ao final, foi cercado pelos presentes que, como era de esperar que, pediram que cantasse. Muito simpático não se fez de rogado e cantou "a capela" , sem nenhum acompanhamento, o que só cantores de verdade conseguem. Grande Agostinho que morreu em trágico acidente de aviação. Tinha muito a oferecer e se foi prematuramente. Explicada minha primeira escolha vou curtir com calma as outras maravilhas. Grande abraço do Antonio.
ResponderExcluirDo meu primo Ruy:
ResponderExcluirReli esta excelente crônica com renovada satisfação. A Bossa Nova sacudiu a música brasileira e consolidou o seu prestígio no exterior. O suplemento com alguns de seus maiores sucessos é um grande presente seu para todos nós.