Na noite de quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019,
abateu-se sobre o Rio de Janeiro um dos mais violentos temporais de sua
história.
Estávamos, Leilah e eu, assistindo, pela televisão,
a uma dessas novas séries do Netflix, como vimos fazendo ultimamente – é uma
boa distração. Eram nove horas da noite, mais ou menos. De repente, uma
ventania, muito forte, me fez fechar os vidros das janelas da sala, o que faço
deixando pequenas frestas, pelas quais o vento passou a assobiar intensamente. Em
seguida, veio uma chuva pesada, intensa. Tornou-se um temporal que, de certa
forma, era esperado, depois que tivemos um janeiro de muitos dias de calor
fortíssimo e sem chuvas.
Continuamos a assistir ao nosso filme, temendo pelo
corte de luz, o que aconteceu de forma muito rápida (poucos segundos) por umas
três vezes.
Começamos a pensar nos filhos e cônjuges daqui do
Rio. Leilah enviou mensagens pelo WhatsApp perguntando, para cada um, onde
estavam, se já estavam em casa. Demorou um pouco, mas Adriana, uma das noras,
deu notícias. Ela mora em São Conrado e trabalha no centro; usa automóvel para
ir e vir, dando um tempo no meio do caminho para malhar na academia, enquanto o
trânsito se acalma. Ela contou que estava indo pela Avenida Niemeyer (que liga o
Leblon a São Conrado pela costa) mas teve de parar porque houve uma queda de
barreira e a avenida foi interditada; e que conseguiu chegar ao Hotel Sheraton e
estava abrigada lá aguardando os acontecimentos.
Luiz, meu filho mais velho, marido de Adriana,
estava em casa e os da Urca, Francisco, o terceiro filho, Simone, sua esposa, e
meu neto Bruno, também.
Jurema, minha filha, que está sempre atenta ao
celular, não respondia à mensagem da Leilah. Tentamos o telefone da casa dela,
que fica no bairro Fonte da Saudade, perto da Lagoa Rodrigo de Freitas; nada.
Dez minutos antes das onze horas, resolvi enviar à
Jurema e Alexandre mensagem perguntando se estavam em casa – nenhuma resposta.
Comecei uma conversa particular com Deus.
Leilah e eu redobramos a atenção para as mensagens do
WhatSapp e, mesmo sabendo que seria pouco provável que alguém fizesse alguma
comunicação por e-mail naquelas circunstâncias, eu consultava também o e-mail
no celular.
Às onze e vinte recebo uma mensagem, no grupo de
nosso almoço de colegas ex-IBMistas, de um amigo que mora em Maringá, Paraná,
perguntando: “Alguém aí ficou preso na chuva? A coisa foi feia!”. Outro do
grupo (pouco mais moço do que eu), que mora em São Conrado, respondeu uns dez
minutos depois: “Eu peguei o grosso da chuva indo para um supermercado na
Barra... Dei meia volta antes de ingressar na Lagoa-Barra e voltei para casa,
sem visibilidade, dirigindo a 10 km/h com o pisca-alerta ligado como alguns
outros poucos carros, tanto à frente como atrás. Mas consegui chegar em casa
com uma certa apreensão. O próximo desafio foi ter coragem de pegar elevador
com medo de ficar preso, pois antes mesmo de sair de casa a força já havia
caído umas duas ou três vezes. Mas eu pensava que era apenas o vento!”. As
outras respostas do grupo viriam de manhã.
Sem a resposta de Jurema e Alexandre, o velho casal
não conseguia dormir. Leilah continuou lendo e eu, sem poder me concentrar em leitura
ou escrita, fui jogar “freecell” no computador para aliviar a cabeça. Até quando
o celular, à uma hora e três minutos, anunciou uma mensagem – era de Jurema,
que dizia: “Estamos bem. Acabamos de chegar em casa. Ajudamos pessoas na rua.
Fomos correr sem celulares.” Alexandre também respondeu, por via das dúvidas. Depois,
fiquei sabendo dos detalhes: eles saíram para correr em volta da Lagoa Rodrigo
de Freitas (por isso não levaram o celular) e depois foram fazer um lanche no
novo bar do Chico, no Humaitá. Eles conhecem o Chico desde que ele era garçom
no Bracarense (botequim famoso do Rio) e foram prestigiar seu novo
empreendimento. De repente, chegou o vendaval, que derrubou uma árvore sobre um
automóvel em frente ao bar, e, a seguir, o temporal. Abrigados, aguardaram a
chuva passar. Decidiram voltar para casa, embora o bairro estivesse totalmente
às escuras. No caminho de volta, pararam para ajudar um taxista que estava
tentando trocar um pneu no escuro. Sem a lanterna do celular, Jurema parou um
automóvel particular, cujo motorista concordou em ajudar com a iluminação dos
faróis. Finalmente, o casal voltou para casa e respondeu nossa mensagem.
Leilah se preparou para dormir e eu, antes de ir
para a cama, tomei um “cowboy” (dose de uísque sem gelo) porque não sou de
ferro. Só consegui pegar no sono depois das duas horas da manhã.
No dia seguinte, recebi no grupo de WhatsApp os
relatos dos amigos do almoço. A ventania (mais de 100km por hora em Copacabana)
assustou e perturbou dois deles. Uma das duas senhoras do grupo, que mora em um
edifício muito alto no Leblon, escreveu: “Imaginem
eu nessa torre sem nada à volta pra diminuir o vento ... Pensei que as janelas
fossem estourar em cima de mim ...” e “Não
foi uma chuva simplesmente. Foi um toró como há tempos não havia.” Outro,
que mora em Botafogo, numa cobertura, contou que teve de “endireitar vasos de 50kg de plantas no terraço até 01:30. Foi
emocionante, de calção, naquela ventania. O terraço fica no 25º. Andar.”
Um dos colegas (octogenário, como eu), contudo,
passou uma noite terrível. Ele mora no Leblon e voltava para casa, de
automóvel, com o filho, quando desabou o temporal. Seguiram as instruções do
Waze, que mandou entrar numa rua que estava alagada, mas dando passagem. De
repente uma onda, provocada por outro carro que os ultrapassou, cobriu o capô e
o carro morreu. Refugiaram-se na marquise de um prédio próximo e começaram “a odisseia de conseguir socorro” da
seguradora. Não sei se deram um jeito de descansar, mas às sete e meia da manhã
o reboque ainda não tinha chegado. Às oito e quarenta e seis ele nos enviou uma
fotografia do carro sobre o reboque com a legenda “Chegando em casa agora... Obrigado pela atenção”.
Um dos amigos, entretanto, dormiu tranquilo e, na
manhã seguinte, comentou: “Santa
inocência, nem percebi que houve algo, além da chuva! Só agora vi o jornal e
tomei conhecimento!!!”
Na manhã de quinta-feira, tivemos mais notícias da
Adriana. Ela dormiu no hotel. Às oito e meia da manhã da quinta-feira, enviou
uma mensagem de voz dizendo que não contou detalhes, antes, para que não
ficássemos preocupados: “O hotel ficou
sem energia e meu celular vai descarregar daqui a pouco, mas estou bem. As
coisas estão complicadas, acho que só saio daqui de helicóptero.” Ela
voltou para casa no meio da tarde.
Logo cedo, liguei a televisão e me inteirei das
notícias: alagamentos e muitas árvores, algumas enormes, arrancadas, em toda a
cidade; deslizamento em Guaratiba, com duas vítimas fatais; inundação na
Rocinha, com uma vítima fatal, e, principalmente, o deslizamento no Vidigal que
atingiu a avenida Niemeyer, soterrou um ônibus, matando duas pessoas. Para
completar o desastre, a ciclovia, recém reforçada para resistir às ondas
violentas das ressacas, também teve um trecho demolido pela avalanche do
Vidigal. Enfim, uma grande tragédia. Acompanhei as notícias, consternado.
Analisando o ocorrido com a família e os amigos, o
susto maior parece-me ter sido o da Adriana. No sábado, pedi a ela que me desse
mais detalhes sobre o ocorrido; ela fez um depoimento impressionante, dramático
mesmo. Transcrevo, a seguir, parte dele:
“Deviam ser umas nove e quarenta da noite, no
máximo. Eu estava, de automóvel, entrando na Avenida Niemeyer, vindo do Rio Sul
(shopping center), da academia de
ginástica. No Leblon, estava chovendo
muito pouco, tanto que o carro estava com o limpador de para-brisa ligado
apenas no temporizador. Quando entrei na Niemeyer, começou a chover forte,
muito forte. O Luizão (meu filho mais velho, marido dela) me ligou e falou para eu retornar, mas eu
já tinha passado do Mirante do Leblon. Respondi que estava muito perto do
Sheraton (hotel), e que, se não desse
para continuar, pararia lá. Bem perto do hotel, o carro na minha frente
resolveu voltar; ele conseguiu manobrar em frente à garagem de serviço do hotel.
Os carros que estavam na minha frente se distanciaram um pouco, fiquei então
com um vazio na minha frente e vi começar a deslizarem coisas da encosta.
Acelerei. Estavam caindo terra e plantas; uma super-bananeira caiu no meu
para-brisa e tapou minha visão. Consegui entrar no pátio do Sheraton. Não dava
para ficar naquele estacionamento aberto, então dirigi até debaixo da marquise
na entrada do hotel.” ... “Fiquei um pouquinho dentro do carro, mas ele estava
balançando demais com o vento, que estava muito forte, fazendo redemoinhos na
água. Decidi sair do carro, mas não tive força para abrir a porta do meu lado;
sentei no banco do carona, e consegui sair do outro lado. Bati na porta do
hotel e me deixaram entrar. Eu estava tremendo muito, com muito medo; me
abriguei no lobby. Uns cinco minutos depois, chegou um rapaz, bem alto e forte,
dizendo que estava no ônibus, tinha quebrado o vidro para sair, andou com água
à altura dos joelhos, e que havia mais pessoas no ônibus e precisavam de ajuda. Estava ventando muito, chovendo muito. Ligaram para o Corpo de Bombeiros, pedindo socorro para o ônibus.”
A seguir
(agora, estou resumindo) ela contou que entraram no saguão do hotel outras
pessoas que estavam fora em seus automóveis e o motorista do ônibus que estava
atrás do ônibus soterrado, dizendo que os passageiros dele estavam bem. Depois,
chegou, em estado de choque, o motorista do ônibus atingido pelo deslizamento contando
que havia dois passageiros mortos dentro do seu ônibus. O pessoal do hotel e
alguns turistas foram ajudar os passageiros a sair do ônibus. Quando os
passageiros chegaram, com a roupa molhada, alguns sujos de terra, receberam
toalhas do pessoal do hotel e a atenção de todos que estavam no saguão.
Adriana passou a noite no hotel que, em condições
extremamente difíceis, abrigou muito bem os “refugiados”, conseguindo quartos
para dormirem e providenciando lanches, mesmo sem energia elétrica – o gerador
do hotel foi inutilizado pela inundação.
No dia seguinte, o hotel serviu o café da manhã e,
cerca de uma hora da tarde, um almoço improvisado – carne (descongelada) assada
na brasa. Lá pelas duas horas, os gerentes do Sheraton iniciaram a evacuação do
hotel, que não tinha a menor condição de funcionar, transferindo os hóspedes
para outros hotéis. Os “refugiados” que estavam de automóvel foram os primeiros
a poder sair, mas apenas no sentido de São Conrado, dando carona a outros que
se abrigaram no hotel. Adriana dirigiu seu automóvel, escoltada por um carro da
Defesa Civil que “abria o caminho” para ela em uma Niemeyer totalmente caótica,
que ela chamou de “campo de guerra”, com barreiras e árvores caídas pelo
caminho. Enviou-nos vídeos e fotos dessa jornada.
Chegou em casa cansada e muito abalada, mas, em seu
relato, destacou que, em meio a toda aquela tristeza, se revelou a
solidariedade das pessoas, seu comportamento humanitário, e a competência e
atenção do pessoal do hotel, que elogiou muito.
Em sua primeira mensagem, Adriana, mencionando o
que aconteceu com o ônibus, usou a expressão “por pouco não sou eu (a vítima)”.
No meu tempo, se diria: “Adriana nasceu de novo”.
Washington Luiz Bastos Conceição
Aqui em casa, por causa do vento muito forte, entrava água pelas frestas da janela na minha área de serviço e pelo ar-condicionado no meu quarto. Tivemos sorte que não faltou luz e pude ir retirando o excesso de água até o vento amainar. Nas redondenzas da minha casa, contei 5 árvores caídas (uma sobre um carro e 2 sobre a rede elétrica) e um poste. Espero que não venha chover assim novamente tão cedo...
ResponderExcluirAh, Washington, contado assim,por quem viveu de perto o drama, faz com que possa avaliar melhor as aflições de quem estava no "fervo" e dos que esperavam notícias de seus queridos A natureza está em franca revolta e isso assusta muita gente, É bom que comece a assustar "Trump & Cia", os que se recusam a levar em conta o aquecimento global. Nessas horas de angústia, a conversa com Deus nos ajuda a manter a esperança. Como disse você: Adriana nasceu de novo. Abraços. Isa
ResponderExcluirRealmente essa noite ficará na história dos que vivem no Rio de Janeiro.
ResponderExcluirAbraços!
Do Álvaro Esteves:
ResponderExcluirMisto de cronica, reportagem e historia de suspense, um ótimo texto. Com direito a um final feliz. Gostei muito de ler, em que pese o sofrimento de vocês. Mas botando pra fora, como vc fez, ajuda a aliviar. grande abraço.
Do Ruy, mwu primo: Caramba Washington! Que drama! Narrativa impressionante! Felizmente as consequências não foram piores. Abraço.
ResponderExcluirDiante do drama vivido pela Adriana nossa estadia na portaria foi café pequeno... quando Hugo e eu saimos do carro a agua estava acima dos joelhos. Deixei meu celular no quebra sol do motorista com receio de afoga-lo. De camiseta nao tinha bolso seguro. Mais adiante resolvi enfrentar a enchente e ir pegar o celular. Voltei com agua pela cintura e ao me sacudir uma aranha negra de uns 8 cm de diametro passeava na minha barriga! Um lado da novela que vivemos merece ser contado e abusando do seu blog ai va: mais ou menos uma hora depois de estarmos abrigados na entrada do predio de numero 300 da Gilberto Cardoso uma moradora chegou, conversou rapidamente conosco e entrou. Pouco depois ela retorna com garrafa de agua mineral e salgadinhos. Uma senhora chegou tambem e ofereceu trazer café. Gente finíssima e super atenciosa. Se alguem conhecer quem mora nesse predio diga de nossa gratidão e encantamento com atitudes como essas tão dificeis de ver hoje em dia.
ResponderExcluirRealmente, a Adriana nasceu de novo. Falei pra ela! Foi muito vento e muita, muita água. A natureza está dando o troco, não só aqui, mas no mundo todo, merecidamente aliás, com o pouco caso que toda humanidade faz tem feito dela.
ResponderExcluirAqui em casa tb tive que secar a área de serviço 3 vezes, pois a água entrava pelas janelas fechadas e ficamos sem luz de umas 21 às 5 da madruga. Mas graças a Deus todos bem.