Eram cinco e vinte da tarde de 15 de outubro. Chovia forte e estava escurecendo cedo. O casal de idosos, Leilah e eu, desceu à garagem do Meia Lua, o edifício onde mora, e embarcou no taxi do motorista que costuma atender nossa nora Simone para levar ou buscar pessoas no aeroporto. Leilah havia feito o agendamento do taxi para as cinco e meia da tarde, o que foi providencial, pois tínhamos reserva no teatro Carlos Gomes, no centro do Rio, e o espetáculo teria início às sete horas da noite, sem tolerância para atrasos dos espectadores.
Fomos buscar nosso filho Cássio, que mora na
Califórnia e estava de visita à família, hospedado em um apartamento do Leblon.
O trânsito estava extremamente congestionado, a quantidade de carros demandando
a Barra da Tijuca, zona oeste do Rio, era imensa; de tal forma que esse pequeno
trajeto, que habitualmente não leva mais do que dez minutos, levou meia hora.
Cássio embarcado, rumamos para o centro do Rio. O aplicativo “Waze” orientou o
Luiz, o motorista, xará de nosso filho mais velho, a fazer o itinerário pelo
túnel Rebouças. O horário de chegada ao teatro, previsto pelo aplicativo,
variava de 18 horas e 50 minutos a 18 e 55. O trânsito na Lagoa Rodrigo de
Freitas também estava muito lento. Continuava chovendo.
O que deu origem a essa aventura, extraordinária
para este idoso que lhe escreve?
Leilah, que luta contra minha má vontade para sair de casa, aproveitou uma ida do Cássio a nossa casa para propor o programa: assistir a uma peça musical que estava sendo apresentada por alguns dias no Rio, com muito sucesso, e que era, nada menos, baseada no livro “Viva o povo brasileiro”, obra prima de João Ubaldo Ribeiro. O Cássio aderiu imediatamente, pois gostou muito do livro, que leu mais de uma vez, nas edições em Português e em Inglês. Leilah e eu também lemos e gostamos muito. Além disso, somos admiradores do Ubaldo, com quem tive um contato interessante, narrado em uma de minhas crônicas. Também aderi, claro, fazendo que não percebi que Leilah tinha o programa em agenda oculta, pois a rapidez com que ela foi à internet e comprou os ingressos foi notável. Era uma demanda reprimida.
De jovens namorados até a idade madura,
frequentamos teatros, Leilah e eu, por iniciativa dela. Em São Paulo,
usufruímos de uma fase extraordinária do teatro brasileiro, destacando-se o
Teatro Brasileiro de Comédia, diretores e atores brilhantes, uma lista notável.
Ao nos mudarmos para o Rio, pudemos assistir a peças e shows cômicos e musicais,
com outros artistas maravilhosos. Com o avançar da idade, programas fora de
casa se tornaram mais difíceis, de modo que já fazia anos que não íamos a
teatro. Recorrendo à memória, a peça mais recente a que assistimos no Rio foi “Intimidade
Indecente”, com Irene Ravache e Marcos Caruso, no Teatro Maison de France (provavelmente
em 2001); em São Paulo, o musical “O Rei Leão” (em 2013 ou 14); em Nova York,
em 2011, “Mary Poppins”, “Zarkana”, espetáculo do “Cirque du Soleil”, e “War Horse”,
uma peça extraordinária em que um cavalo de palha no palco se torna, gradualmente,
em nossa percepção, um animal real.
Neste ano, nossa ida ao teatro seria, portanto,
algo excepcional.
Rodamos, ainda com bastante trânsito, pelo túnel
Rebouças e pelo elevado que lhe segue, mas encontramos bem livre o caminho para
o centro, de modo que chegamos à porta do teatro às 18:55. Ufa!
Descer do automóvel, para o casal, é uma operação
que exige cuidados, mas, com a ajuda do Cássio, foi tudo bem. À entrada do
teatro, os cerca de dez degraus seriam difíceis de vencer, mas um pequeno
elevador, tipo monta-carga, operado por uma pessoa do teatro que nos atendeu
muito bem, resolveu o problema. Este mesmo funcionário nos conduziu até a
plateia. O Cássio amparando a mãe e eu me valendo de uma bengala.
O teatro Carlos Gomes sofreu uma bela e completa
reforma, de modo que a plateia, com bonitas e confortáveis poltronas e suas enormes cortinas, nos impressionou muito bem.
Sala do Teatro |
Afinal, com a chuva e consequente dificuldade do
trânsito na cidade, houve uma tolerância de uns dez minutos, pelo menos, para o
início do espetáculo.
Abertas as cortinas mostrando o grande palco e um
cenário elaborado, muito bonito, vários personagens se apresentaram, com música
estrondosa e vigorosa percussão. Iniciado assim, o espetáculo prosseguiu com os atores contando e cantando as histórias fantásticas da colonização da Bahia, os
personagens se revezando em cantos e monólogos (algumas letras das músicas eu
não conseguia entender completamente), envolvendo-nos em sua atmosfera mágica.
Já fazia tempo que eu havia lido o livro, de modo que me lembrei, apenas em parte, dos temas principais e da sequência histórica (pensei: vou reler o livro). Depois de algum
tempo, senti que o espetáculo estava durando muito; eu estava com um certo
desconforto. Afrouxei o cinto da calça e me senti melhor. Não falei nada
para o Cássio e a Leilah. Conclui que,
pela duração da primeira parte, não haveria segundo ato.
Quando as cortinas se fecharam, anunciaram pelo alto-falante: “Intervalo de 15 minutos”. Exclamei: “É gozação!” e disse para a Leilah e o Cássio algo como: “Para mim, já é suficiente, quero ir para casa”. Eles ficaram muito admirados, mas eu estava falando sério. Em seguida, como me convenci de que haveria mesmo uma segunda parte e eles queriam continuar, percebi que estava me tornando um “desmancha prazer”; com o descanso do intervalo, me recuperei e voltei à plateia até o final. Na verdade, eu estou destreinado, habituado com a assistência confortável, em casa, de filmes na televisão, quando posso parar o filme e voltar quando me aprouver.
Apesar desse incidente, acabei apreciando muito a peça, vibrando com a música e a dança, e fiquei muito feliz por ter aproveitado o programa todo. Quem comenta bem o espetáculo é a Leilah, a quem passo a palavra:
“Foi ótima a saída ao teatro. O Carlos Gomes
foi totalmente reformado, com requinte, e o atendimento aos idosos foi muito bom.
Gostei muito do espetáculo. Artistas ótimos, que dançavam, cantavam e tocavam instrumentos muito bem, sempre com uma expressão de alegria no rosto e nos gestos. A particularidade é que não havia apenas um par de atores principais; uns oito atores e atrizes se revezavam como personagem central em diferentes cenas. Os cenários são de muito bom gosto e adequados a cada época (são três séculos de história) e aos locais. A coreografia e as músicas são excelentes. A única ressalva que faço é com a duração do espetáculo: poderia ser um pouco menos longo.”
Cássio também apreciou muito, declarando que achou
o espetáculo de alto nível, muito bem
executado.
A volta para casa, em um taxi disponível à saída do teatro, foi, pelo itinerário inverso, rápida e tranquila. Final feliz para a aventura. A avaliação da Leilah, apesar da dificuldade inicial foi: “Enfim, uma noite perfeita.”
Washington Luiz Bastos Conceição
Notas:
1a. A crônica em que falo de Ubaldo é “Ubaldo meu
vizinho”, escrita em 2013 e que incluí no livro “Falando de Pessoas”. Está
disponível no blog. Link:
https://washingtonconceicao.blogspot.com/2013/02/ubaldo-meu-vizinho.html
2a. Em nosso tempo, em São Paulo, o grande destaque entre
os bons diretores foi Zbigniew
Ziembinski. A lista de atores extraordinários incluía Cacilda Backer,
Paulo Autran, Sérgio Cardoso, Maria Della Costa, Leonardo Vilar, Nídia Lícia. Walmor
Chagas, Cleyde Yáconis, Nicette Bruno, Paulo Goulart ...
No Rio, artistas maravilhosos de peças e shows a
que assistimos foram Tom Jobim, Dorival Caymmi, Vinícius de Moraes, Baden
Powell, Toquinho, Fernanda Montenegro, Chico Anysio, Jô Soares, Elis Regina, Maria Bethânia, Gal Costa, Chico Buarque,
Roberto Carlos...
As listas são extensas, há, certamente, mais nomes (daí as reticências) e ainda havia outros que vimos somente no cinema e na televisão.
3a. A foto do teatro foi copiada do site do Guia Cultural do Centro Histórico do Rio de Janeiro:
https://guiaculturalcentrodorio.com.br/teatro-municipal-carlos-gomes/