Cara leitora ou prezado leitor:
Prosseguindo em meu programa de lhes oferecer mais
de meus escritos neste tempo de isolamento social, apresento-lhe hoje a
transcrição do capítulo “Primeira visita a Stanford”, de meu e-book “A
Califórnia e Nós”, publicado em 2015.
Como se trata de um capítulo inteiro do livro, que
preferi não dividir em duas crônicas, o texto é mais extenso do que o habitual.
Dedico esta publicação ao meu filho Cássio e a Julia,
sua esposa, que se graduaram em Stanford e, hoje, residem a uns quinze minutos
(de automóvel) da Universidade.
Introdução
Em maio de 1968, designado pela IBM para o Projeto
3.7, mudei-me com a família para Chicago. Éramos, então, Leilah, minha esposa,
eu e os filhos Luiz (7 anos), Cássio (5) e Francisco (2 e meio).
Em setembro de 1969 encerrei minhas atividades do
Projeto nos Estados Unidos, as quais teriam continuação no Brasil com o
marketing do Sistema IBM/3. Chegara a hora de voltarmos.
Decidimos tirar uns dias de férias, para
conhecermos a Califórnia e visitar o México, voltando de Chicago a São Paulo
com paradas de alguns dias em São Francisco, Los Angeles, e Cidade do México.
Voltei à Califórnia somente depois de doze anos.
Primeira visita a Stanford
Em 1981, fiz uma viagem a trabalho a Nova York,
Montreal e Tóquio. Voltei por São Francisco, pois queria visitar a Universidade
de Stanford.
O objetivo dessa visita era conhecer a
Universidade em que o Cássio estava matriculado. Aceito por seu desempenho na
Escola Americana do Rio de Janeiro, ele conseguira, com o apoio de professores
que se interessaram muito pelo seu caso, uma bolsa de estudos do Departamento
Atlético de Stanford para integrar o time de futebol (“soccer”) da
Universidade.
Esta viagem Rio – Nova York – Montreal – Nova York
– Tóquio – São Francisco merece que eu me detenha para comentá-la.
Eu era, então, responsável, na IBM Brasil, pelo
projeto “National Language”, cujo objetivo era oferecer aos usuários de
computadores IBM a possibilidade de operarem os mesmos usando o próprio idioma.
Essa necessidade se acentuou quando surgiram os assim chamados “usuários
finais”, pessoas das empresas dos setores operacionais e administrativos das
organizações que passaram a ter disponíveis terminais dos grandes computadores
centrais (os “mainframes”) e, a seguir, computadores pessoais. Até então, sendo
usuários apenas os profissionais do setor de Informática, estes tinham
obrigatoriamente de ser proficientes em Inglês.
Hoje em dia, cara leitora ou prezado leitor, você
abre seu computador e seleciona o idioma – este é o principal resultado dos
projetos de “National Language”.
As atividades em Nova York foram reuniões de
controle e planejamento com o grupo internacional do projeto, realizadas em
White Plains.
Eu estava em uma dessas reuniões quando fui
chamado por telefone pelo técnico do time de futebol da Universidade de
Clemson, na Carolina do Norte, que insistiu para que eu interferisse na decisão
do Cássio, que havia preferido ir para Stanford. Expliquei a ele que a decisão
tinha sido de meu filho e já estava tomada. Foi uma conversa longa. Não tenho
ideia de como ele conseguiu me localizar em um dos muitos escritórios da IBM no
estado de Nova York. A conversa foi cansativa, mas o paizão aqui, louco por
futebol, ficou muito envaidecido pelo prestígio do filho. Esse técnico foi um
daqueles que receberam do professor da Escola Americana uma fita de vídeo (que,
aliás, nunca vi) mostrando as habilidades do Cássio em campo.
Em Montreal, fui visitar o Centro de “National
Language” da IBM Canada. A Empresa, havia já algum tempo, tinha de oferecer,
obrigatoriamente, aos clientes da Província de Quebec, manuais em Francês (além
daqueles em Inglês), bem como o software interativo utilizado pelos usuários
finais. O Centro era um departamento exemplar, muito bem montado. Obtive
informações importantes sobre a experiência e a organização deles. O gerente
geral, que eu havia conhecido nas reuniões de Nova York, ainda estava fora; fui
recebido pelas gerentes dos setores que se reportavam a ele. Após a visita, me
levaram para almoçar. Eram somente mulheres, elegantemente vestidas; para
espanto do “maitre”, pagaram a conta. Para mim, foi uma sensação diferente,
curiosa, num tempo ainda machista.
De Montreal voltei para Nova York e, no dia
seguinte, embarquei para Tóquio. A Pan American usava um Boeing 707 adaptado
para fazer um voo direto a Tóquio pela calota polar – não fazia escala no
Alasca. Partia ao meio-dia, voava sempre com o dia claro e, após umas treze
horas de viagem, chegava ao aeroporto de Narita cerca das 14 horas do dia
seguinte (coisas do fuso horário).
Durante o voo, apenas descansei, não dormi. Mesmo
que quisesse, não conseguiria, porque as senhoras japonesas que acompanhavam os
maridos na viagem, mas se sentaram separadas deles, faziam um alarido
considerável. Li o tempo todo, estudei um guia linguístico (“Everyday Japanese
– A Basic English-Japanese Wordbook”) que meu compadre Hideyo Kato me deu. Aprendi, por exemplo, que taxi era “takushi”;
que cerveja era “biru”; leite, “miruku”. Recapitulei os cumprimentos e o muito
obrigado dos japoneses. No fim da viagem, achei que estava preparado para
necessidades básicas de comunicação no “País do Sol Nascente”.
O aeroporto já era o de Narita, distante duas
horas de ônibus do terminal de Tóquio. Troquei dinheiro e comprei a passagem do
ônibus, sem problema.
Durante a viagem de ônibus, pude apreciar a
paisagem e algumas coisas me chamaram a atenção. Uma delas, a quantidade de
casas, naquela região rural, com painéis de captação de energia solar
(lembre-se, leitor, corria o ano de 1981). Outra, os letreiros informativos da
estrada, em caracteres japoneses, que me deram a chocante sensação do
analfabetismo total – e não apenas o desconhecimento do idioma. Ao
aproximarmo-nos de Tóquio, surgiram grandes prédios de apartamentos, em cujos
terraços e janelas os moradores estendiam roupas de cama, aproveitando o sol de
verão. Notei, também, que todo terreno não construído era aproveitado para
plantação (talvez de arroz), mesmo quando contíguos a instalações como oficinas
mecânicas, por exemplo.
Cheguei ao terminal de Tóquio, uma espécie de
estação rodoviária central, onde recebi minha mala por uma esteira semelhante
às dos aeroportos e me dirigi ao portão de saída. Na frente deste, um guarda
com uma farda impecável – e luvas – parecia disposto a orientar os passageiros.
Perguntei-lhe: “Takushi?”. Ele se sentiu à vontade para desfiar uma sentença
completa em Japonês; não entendi nada e o que me valeu foi o gesto dele
indicando a direção que eu devia tomar.
Ao tomar o taxi, notei a roupa formal do motorista
– que incluía luvas. Apenas cumprimentei e informei o nome de meu hotel. Devo
ter falado, no máximo, algo como “Konishi wa” e “Okura hoteru dozo”. Não tentei
conversar, pois a experiência com o guarda me mostrou que eu não seria capaz de
levar o papo a bom termo.
No hotel pude me comunicar normalmente, em Inglês.
Ao chegar ao apartamento, eram cerca de cinco da tarde; apressei-me a telefonar
para meu compadre Kato. Hosanna, sua esposa, havia me informado que ele estaria
em Tóquio naquela semana e me deu o nome do hotel. Consegui falar com ele, no
momento em que ele estava saindo do quarto. Era o último dia de sua viagem ao
Japão (aonde ia com frequência, a negócios) e ele ia jantar com conhecidos de
lá. Era convidado, mas conseguiu que estendessem o convite para mim. Assim, meu
primeiro jantar em Tóquio foi memorável, num restaurante de luxo, onde as
garçonetes usavam uma rica veste típica. Comi uma deliciosa “chabu-chabu”,
carne em fatias assada em uma pedra grande, quentíssima, colocada sobre a mesa,
acompanhada por vários outros pratos.
Foi um ótimo jantar, comunicamo-nos bem em Inglês
e não tínhamos preocupação com o trabalho no dia seguinte porque era noite de
sexta feira.
O Kato voltou ao Brasil no dia seguinte e eu
resolvi aproveitar para fazer duas excursões (em grupo) nas proximidades de
Tóquio, uma no sábado e outra no domingo, a partir do hotel.
A primeira foi muito curiosa: um ônibus apanhou o
grupo no hotel e nos levou primeiro ao Fujiyama; a seguir, almoçamos (frango,
comida de turista) num lugar muito aprazível. Depois do almoço, seguimos de
ônibus até a margem de um lago, onde tomamos um barco que nos levou à margem
oposta, após uma boa travessia, panorâmica. A partir deste ponto, fizemos um
passeio de teleférico sobre as montanhas (Hakone), passando sobre o que me
pareceu a cratera de um vulcão extinto de que emanava uma fumacinha. Deixando o
teleférico, embarcamos novamente no ônibus e rumamos de volta para a cidade.
Como de hábito, o guia nos distraia durante a viagem. Fez comentários interessantes sobre o País e
Tóquio em particular. Lembro-me que ele contou que para uma pessoa residente na
cidade poder comprar um automóvel tinha de provar que possuía local para
guardar o veículo. Pareceu-me uma boa ideia, além de outras sobre trânsito e
estacionamentos, que talvez devêssemos adotar nas grandes cidades do Brasil.
Foi um passeio interessante, ilustrativo, e
curioso porque usamos vários meios de transporte: o rodoviário, o hidroviário e
o aéreo (bondinho pendurado em cabos).
Essa excursão é descrita na internet, hoje, por
uma agência de turismo, em Inglês, que traduzi assim:
“Deixe Tóquio, suba à Mt. Fuji's 5th station e
aprecie a vista de 2300 metros de altitude. A seguir, penetre no belo cenário
natural de Hakone mediante um agradável cruzeiro de barco no Lago Ashi e viaje
no teleférico de Komagatake.”
No domingo, minha excursão foi para Nikko, pequena
cidade perto de Tóquio, para visita ao templo Toshogu.
Na segunda-feira, iniciei o programa de trabalho,
preparado em Nova York, que se constituiu numa série de visitas e entrevistas
com o pessoal da IBM Japão envolvido com “National Language”.
Lá, a dificuldade era muito maior do que no
Canadá, por causa da diferença e da quantidade dos símbolos na escrita. Para o
uso dos computadores, além da tradução dos textos propriamente dita, a
digitação dos dados implicava o uso de milhares de símbolos em vez das 26
letras do alfabeto inglês. Eu já havia assistido, alguns anos antes, a um filme
da IBM que mostrava uma operadora, agilíssima, operando um teclado no formato
de vasto tabuleiro, com o qual ela podia registrar, mediante teclas de
controle, uns dois mil símbolos “Kanji”, se não me falha a memória. Como diria
um dos personagens de Chico Anysio, era um espanto! Os nossos “ç”, “ã”, “õ” e
os demais acentos são brincadeira, perto dessa diversidade de símbolos.
Nas entrevistas com meus colegas japoneses,
procurei me informar de como eles vinham resolvendo as dificuldades da tradução
de software, como operavam, como se organizaram etc., pois tinham, já naquela
época, grande experiência no assunto.
Fiz visitas ao escritório no centro da cidade,
onde me admirei com a arquitetura dos edifícios (“à prova de terremotos”,
diziam) e me lembro de alguns detalhes, especialmente de um almoço com o grupo,
em um restaurante comercial situado em uma galeria. Eu estava tentando comer de
pauzinho, mas notei que estava muito devagar e atrasando os outros. Pedi um
garfo. O restaurante não tinha; rodaram a galeria toda e acabaram me arranjando
uma colher. Quando conto esse vexame para meu neto carioca, que
gosta muito de comida japonesa e maneja bem os pauzinhos, ele acha muita graça.
O Kato já me deu algumas aulas sobre o uso da ferramenta, mas não adiantou.
Desisti.
Uma das pessoas com quem eu tinha de falar trabalhava
numa fábrica da IBM nos arredores de Tóquio, onde fui visitá-lo. Para orientar
o motorista do taxi, ele me enviou por fax um mapa com o itinerário para eu
entregar ao motorista. Não haveria condições de eu entender e transmitir as
orientações do trajeto. Além disso, lembremos, o Japão é famoso por não adotar
o sistema de endereço por rua e número.
Grande surpresa tive uma noite em que resolvi
jantar fora do hotel, cujo restaurante era caro e eu queria variar.
Indicaram-me um restaurante próximo ao hotel em que os comensais comiam em
torno de um balcão em “U”. Dentro do “U” havia, se me lembro bem, frutas e
verduras. Na parte de cima do “U”, numa espécie de palco, estavam sentados dois
japoneses enormes, que serviam os clientes com uma longa pá. Os pedidos eram
tomados por um terceiro, que se dirigia a cada cliente pelo lado de fora do
“U”. Os dois lá de cima anunciavam ruidosamente os pratos servidos e sabiam
exatamente onde estavam os clientes respectivos. Não havia problema na
transferência da pá para o balcão. Se não me engano, comi uma ótima lula
recheada.
Nessa noite, ao sair do restaurante, um encontro
surpreendente: um colega chileno que trabalhara na IBM Brasil vinha pela mesma
calçada. Fazia tempo que não nos víamos, mas nos reconhecemos imediatamente.
Ele estava trabalhando nos Estados Unidos, ainda na IBM. Jantamos juntos no dia
seguinte, e pusemos as notícias em dia.
Terminada minha missão em Tóquio, iniciei a viagem
de volta ao Brasil, via São Francisco. O voo foi normal – apenas estranhei sair
do Japão de noite e chegar à Califórnia na manhã do mesmo dia. As pessoas hoje
em dia viajam tanto que não devem reparar mais nessa volta aparente no tempo,
mas realmente me diverti com isso, tanto que não esqueci e conto aqui.
Chegando ao aeroporto, aluguei um automóvel,
arranjei um mapa e tomei a autoestrada 101 rumo ao Sul, para Palo Alto, no Vale
do Silício. Um percurso que eu viria a fazer muitas outras vezes e agora
conheço muito bem.
Saí da 101 na Embarcadero Road, segui até a El
Camino Real, virei à direita e cheguei ao Holiday Inn de Palo Alto, onde me
hospedei. O hotel ficava bem próximo à Universidade de Stanford. Telefonei para
o Nelson Lodge, técnico do time de soccer da Universidade, com quem já havia
marcado a visita. Era começo da tarde. Ele enviou seu assistente, o Tony Igwe,
para me buscar no hotel. Este, muito simpático e atencioso, logo contou que
havia jogado futebol pelo time juvenil de seu país, a Nigéria, e tivera a
oportunidade de jogar contra o Pelé. Deu-me a impressão de este fato ter sido a
maior honra da vida dele como esportista.
Cassio me contou recentemente que o Tony Igwe
jogou na seleção olímpica da Nigéria participando inclusive das olimpíadas de
1968, se não me engano. E que ele realmente jogou pela seleção nigeriana contra
o Santos, num daqueles amistosos que este time brasileiro fazia em excursão
pelo mundo; claro que jogar contra o Pelé foi uma honra enorme e algo que ele
sempre terá orgulho de ter feito — mas o que ele dizia para o Cássio com muita
satisfação é que ele tinha marcado (pois
era lateral direito) "the great
Edu," a quem ele considerava o melhor ponta esquerda do mundo. Ele tinha
um álbum de fotografias inteiro dedicado a fotos do jogo contra o Santos, e a
maioria das fotos era dele disputando a bola com o "great Edu."
Encontrei com o Igwe outras vezes e nosso
relacionamento foi sempre cordial.
Stanford me surpreendeu e encantou desde aquela
primeira visita, com seu campus parecendo uma bela pequena cidade, muito bem
cuidada. Tony me levou ao Departamento Atlético, onde encontramos o Nelson.
Este me conduziu em um “tour” pela Universidade, iniciando pelas instalações
esportivas – quadras e campos de esportes. Fez questão de me mostrar, com
grande orgulho, algo que eu entendia como “waiting room” (sala de espera), quando
nos dirigíamos para lá, e não tinha ideia de qual seria sua finalidade
esportiva. Na verdade, era “weight room” (sala de pesos) um galpão enorme com
todo tipo de aparelhos para exercícios, o que seria hoje no Brasil o salão de
uma enorme academia de ginástica. Naquele tempo, quando em nosso País se
anunciava com grande alarde o início do uso de um aparelho chamado “Nautilus”
por nossos craques de futebol (Reinaldo, centroavante da seleção, foi
fotografado se exercitando em um deles) vi, admirado, uma grande quantidade de
máquinas daquele tipo na sala de pesos do Departamento Esportivo de Stanford.
Nelson estendeu depois nossa excursão para outras
instalações da Universidade, inclusive ao centro do campus, onde ficam a
Biblioteca, a ótima livraria, o Correio, lanchonetes, em torno de uma praça
bastante frequentada, apesar de ser tempo das férias de verão. Nessa praça fui
apresentado ao Vice-Reitor de Admissões, Fred Hargadon, que havia assinado a
carta de admissão do Cássio na Universidade.
Falei com o Nelson sobre o Cássio. Não precisei
comentar seu futebol porque ele havia assistido ao filme que o professor da
Escola Americana tinha distribuído. Comentei o telefonema que recebi do técnico
de Clemson e ele se deliciou com a história, pois, fiquei então sabendo, eles
competiam por novos jogadores.
Aproveitei para comprar camisetas e agasalhos de
Stanford para os filhos.
Foi uma ótima visita. Fiquei certo de que meu
filho tinha feito uma ótima escolha e de que teria pela frente um enorme desafio,
especialmente nos estudos.
Voltei ao Rio satisfeito e com muito para contar à
família e aos amigos.
Washington Luiz Bastos Conceição
Nota:
Cássio, após a graduação em Stanford, empregou-se em uma empresa da região, casou-se e tem dois filhos americanos. Leilah e eu passamos, então, a
ter razões ainda mais fortes para viajar à Califórnia, o que fizemos por mais
de trinta anos, até quando nossas condições físicas permitiram. Agora, somos
visitados no Rio.
Nessas viagens, sempre íamos a Universidade;
visitávamos a igreja, a livraria, a biblioteca e fazíamos um lanche na praça central,
muito frequentada pelos alunos. E, claro, passávamos pelo estádio, onde vimos a seleção brasileira de futebol jogar na Copa de 1984.