sábado, 25 de abril de 2020

Minha primeira visita a Stanford em memorável viagem


Cara leitora ou prezado leitor:
Prosseguindo em meu programa de lhes oferecer mais de meus escritos neste tempo de isolamento social, apresento-lhe hoje a transcrição do capítulo “Primeira visita a Stanford”, de meu e-book “A Califórnia e Nós”, publicado em 2015.
Como se trata de um capítulo inteiro do livro, que preferi não dividir em duas crônicas, o texto é mais extenso do que o habitual.
Dedico esta publicação ao meu filho Cássio e a Julia, sua esposa, que se graduaram em Stanford e, hoje, residem a uns quinze minutos (de automóvel) da Universidade.


Introdução

Em maio de 1968, designado pela IBM para o Projeto 3.7, mudei-me com a família para Chicago. Éramos, então, Leilah, minha esposa, eu e os filhos Luiz (7 anos), Cássio (5) e Francisco (2 e meio).
Em setembro de 1969 encerrei minhas atividades do Projeto nos Estados Unidos, as quais teriam continuação no Brasil com o marketing do Sistema IBM/3. Chegara a hora de voltarmos.
Decidimos tirar uns dias de férias, para conhecermos a Califórnia e visitar o México, voltando de Chicago a São Paulo com paradas de alguns dias em São Francisco, Los Angeles, e Cidade do México.
Voltei à Califórnia somente depois de doze anos.

Primeira visita a Stanford

Em 1981, fiz uma viagem a trabalho a Nova York, Montreal e Tóquio. Voltei por São Francisco, pois queria visitar a Universidade de Stanford.
O objetivo dessa visita era conhecer a Universidade em que o Cássio estava matriculado. Aceito por seu desempenho na Escola Americana do Rio de Janeiro, ele conseguira, com o apoio de professores que se interessaram muito pelo seu caso, uma bolsa de estudos do Departamento Atlético de Stanford para integrar o time de futebol (“soccer”) da Universidade.
Esta viagem Rio – Nova York – Montreal – Nova York – Tóquio – São Francisco merece que eu me detenha para comentá-la.

Eu era, então, responsável, na IBM Brasil, pelo projeto “National Language”, cujo objetivo era oferecer aos usuários de computadores IBM a possibilidade de operarem os mesmos usando o próprio idioma. Essa necessidade se acentuou quando surgiram os assim chamados “usuários finais”, pessoas das empresas dos setores operacionais e administrativos das organizações que passaram a ter disponíveis terminais dos grandes computadores centrais (os “mainframes”) e, a seguir, computadores pessoais. Até então, sendo usuários apenas os profissionais do setor de Informática, estes tinham obrigatoriamente de ser proficientes em Inglês.
Hoje em dia, cara leitora ou prezado leitor, você abre seu computador e seleciona o idioma – este é o principal resultado dos projetos de “National Language”.


As atividades em Nova York foram reuniões de controle e planejamento com o grupo internacional do projeto, realizadas em White Plains.
Eu estava em uma dessas reuniões quando fui chamado por telefone pelo técnico do time de futebol da Universidade de Clemson, na Carolina do Norte, que insistiu para que eu interferisse na decisão do Cássio, que havia preferido ir para Stanford. Expliquei a ele que a decisão tinha sido de meu filho e já estava tomada. Foi uma conversa longa. Não tenho ideia de como ele conseguiu me localizar em um dos muitos escritórios da IBM no estado de Nova York. A conversa foi cansativa, mas o paizão aqui, louco por futebol, ficou muito envaidecido pelo prestígio do filho. Esse técnico foi um daqueles que receberam do professor da Escola Americana uma fita de vídeo (que, aliás, nunca vi) mostrando as habilidades do Cássio em campo.
Em Montreal, fui visitar o Centro de “National Language” da IBM Canada. A Empresa, havia já algum tempo, tinha de oferecer, obrigatoriamente, aos clientes da Província de Quebec, manuais em Francês (além daqueles em Inglês), bem como o software interativo utilizado pelos usuários finais. O Centro era um departamento exemplar, muito bem montado. Obtive informações importantes sobre a experiência e a organização deles. O gerente geral, que eu havia conhecido nas reuniões de Nova York, ainda estava fora; fui recebido pelas gerentes dos setores que se reportavam a ele. Após a visita, me levaram para almoçar. Eram somente mulheres, elegantemente vestidas; para espanto do “maitre”, pagaram a conta. Para mim, foi uma sensação diferente, curiosa, num tempo ainda machista.
De Montreal voltei para Nova York e, no dia seguinte, embarquei para Tóquio. A Pan American usava um Boeing 707 adaptado para fazer um voo direto a Tóquio pela calota polar – não fazia escala no Alasca. Partia ao meio-dia, voava sempre com o dia claro e, após umas treze horas de viagem, chegava ao aeroporto de Narita cerca das 14 horas do dia seguinte (coisas do fuso horário).
Durante o voo, apenas descansei, não dormi. Mesmo que quisesse, não conseguiria, porque as senhoras japonesas que acompanhavam os maridos na viagem, mas se sentaram separadas deles, faziam um alarido considerável. Li o tempo todo, estudei um guia linguístico (“Everyday Japanese – A Basic English-Japanese Wordbook”) que meu compadre Hideyo Kato me deu.  Aprendi, por exemplo, que taxi era “takushi”; que cerveja era “biru”; leite, “miruku”. Recapitulei os cumprimentos e o muito obrigado dos japoneses. No fim da viagem, achei que estava preparado para necessidades básicas de comunicação no “País do Sol Nascente”.

O aeroporto já era o de Narita, distante duas horas de ônibus do terminal de Tóquio. Troquei dinheiro e comprei a passagem do ônibus, sem problema.
Durante a viagem de ônibus, pude apreciar a paisagem e algumas coisas me chamaram a atenção. Uma delas, a quantidade de casas, naquela região rural, com painéis de captação de energia solar (lembre-se, leitor, corria o ano de 1981). Outra, os letreiros informativos da estrada, em caracteres japoneses, que me deram a chocante sensação do analfabetismo total – e não apenas o desconhecimento do idioma. Ao aproximarmo-nos de Tóquio, surgiram grandes prédios de apartamentos, em cujos terraços e janelas os moradores estendiam roupas de cama, aproveitando o sol de verão. Notei, também, que todo terreno não construído era aproveitado para plantação (talvez de arroz), mesmo quando contíguos a instalações como oficinas mecânicas, por exemplo.
Cheguei ao terminal de Tóquio, uma espécie de estação rodoviária central, onde recebi minha mala por uma esteira semelhante às dos aeroportos e me dirigi ao portão de saída. Na frente deste, um guarda com uma farda impecável – e luvas – parecia disposto a orientar os passageiros. Perguntei-lhe: “Takushi?”. Ele se sentiu à vontade para desfiar uma sentença completa em Japonês; não entendi nada e o que me valeu foi o gesto dele indicando a direção que eu devia tomar.
Ao tomar o taxi, notei a roupa formal do motorista – que incluía luvas. Apenas cumprimentei e informei o nome de meu hotel. Devo ter falado, no máximo, algo como “Konishi wa” e “Okura hoteru dozo”. Não tentei conversar, pois a experiência com o guarda me mostrou que eu não seria capaz de levar o papo a bom termo.
No hotel pude me comunicar normalmente, em Inglês. Ao chegar ao apartamento, eram cerca de cinco da tarde; apressei-me a telefonar para meu compadre Kato. Hosanna, sua esposa, havia me informado que ele estaria em Tóquio naquela semana e me deu o nome do hotel. Consegui falar com ele, no momento em que ele estava saindo do quarto. Era o último dia de sua viagem ao Japão (aonde ia com frequência, a negócios) e ele ia jantar com conhecidos de lá. Era convidado, mas conseguiu que estendessem o convite para mim. Assim, meu primeiro jantar em Tóquio foi memorável, num restaurante de luxo, onde as garçonetes usavam uma rica veste típica. Comi uma deliciosa “chabu-chabu”, carne em fatias assada em uma pedra grande, quentíssima, colocada sobre a mesa, acompanhada por vários outros pratos.
Foi um ótimo jantar, comunicamo-nos bem em Inglês e não tínhamos preocupação com o trabalho no dia seguinte porque era noite de sexta feira.
O Kato voltou ao Brasil no dia seguinte e eu resolvi aproveitar para fazer duas excursões (em grupo) nas proximidades de Tóquio, uma no sábado e outra no domingo, a partir do hotel.
A primeira foi muito curiosa: um ônibus apanhou o grupo no hotel e nos levou primeiro ao Fujiyama; a seguir, almoçamos (frango, comida de turista) num lugar muito aprazível. Depois do almoço, seguimos de ônibus até a margem de um lago, onde tomamos um barco que nos levou à margem oposta, após uma boa travessia, panorâmica. A partir deste ponto, fizemos um passeio de teleférico sobre as montanhas (Hakone), passando sobre o que me pareceu a cratera de um vulcão extinto de que emanava uma fumacinha. Deixando o teleférico, embarcamos novamente no ônibus e rumamos de volta para a cidade. Como de hábito, o guia nos distraia durante a viagem.  Fez comentários interessantes sobre o País e Tóquio em particular. Lembro-me que ele contou que para uma pessoa residente na cidade poder comprar um automóvel tinha de provar que possuía local para guardar o veículo. Pareceu-me uma boa ideia, além de outras sobre trânsito e estacionamentos, que talvez devêssemos adotar nas grandes cidades do Brasil.
Foi um passeio interessante, ilustrativo, e curioso porque usamos vários meios de transporte: o rodoviário, o hidroviário e o aéreo (bondinho pendurado em cabos).
Essa excursão é descrita na internet, hoje, por uma agência de turismo, em Inglês, que traduzi assim:
“Deixe Tóquio, suba à Mt. Fuji's 5th station e aprecie a vista de 2300 metros de altitude. A seguir, penetre no belo cenário natural de Hakone mediante um agradável cruzeiro de barco no Lago Ashi e viaje no teleférico de Komagatake.”
No domingo, minha excursão foi para Nikko, pequena cidade perto de Tóquio, para visita ao templo Toshogu.
Na segunda-feira, iniciei o programa de trabalho, preparado em Nova York, que se constituiu numa série de visitas e entrevistas com o pessoal da IBM Japão envolvido com “National Language”.
Lá, a dificuldade era muito maior do que no Canadá, por causa da diferença e da quantidade dos símbolos na escrita. Para o uso dos computadores, além da tradução dos textos propriamente dita, a digitação dos dados implicava o uso de milhares de símbolos em vez das 26 letras do alfabeto inglês. Eu já havia assistido, alguns anos antes, a um filme da IBM que mostrava uma operadora, agilíssima, operando um teclado no formato de vasto tabuleiro, com o qual ela podia registrar, mediante teclas de controle, uns dois mil símbolos “Kanji”, se não me falha a memória. Como diria um dos personagens de Chico Anysio, era um espanto! Os nossos “ç”, “ã”, “õ” e os demais acentos são brincadeira, perto dessa diversidade de símbolos.

Nas entrevistas com meus colegas japoneses, procurei me informar de como eles vinham resolvendo as dificuldades da tradução de software, como operavam, como se organizaram etc., pois tinham, já naquela época, grande experiência no assunto.
Fiz visitas ao escritório no centro da cidade, onde me admirei com a arquitetura dos edifícios (“à prova de terremotos”, diziam) e me lembro de alguns detalhes, especialmente de um almoço com o grupo, em um restaurante comercial situado em uma galeria. Eu estava tentando comer de pauzinho, mas notei que estava muito devagar e atrasando os outros. Pedi um garfo. O restaurante não tinha; rodaram a galeria toda e acabaram me arranjando uma colher. Quando conto esse vexame para meu neto carioca, que gosta muito de comida japonesa e maneja bem os pauzinhos, ele acha muita graça. O Kato já me deu algumas aulas sobre o uso da ferramenta, mas não adiantou. Desisti.
Uma das pessoas com quem eu tinha de falar trabalhava numa fábrica da IBM nos arredores de Tóquio, onde fui visitá-lo. Para orientar o motorista do taxi, ele me enviou por fax um mapa com o itinerário para eu entregar ao motorista. Não haveria condições de eu entender e transmitir as orientações do trajeto. Além disso, lembremos, o Japão é famoso por não adotar o sistema de endereço por rua e número.

Grande surpresa tive uma noite em que resolvi jantar fora do hotel, cujo restaurante era caro e eu queria variar. Indicaram-me um restaurante próximo ao hotel em que os comensais comiam em torno de um balcão em “U”. Dentro do “U” havia, se me lembro bem, frutas e verduras. Na parte de cima do “U”, numa espécie de palco, estavam sentados dois japoneses enormes, que serviam os clientes com uma longa pá. Os pedidos eram tomados por um terceiro, que se dirigia a cada cliente pelo lado de fora do “U”. Os dois lá de cima anunciavam ruidosamente os pratos servidos e sabiam exatamente onde estavam os clientes respectivos. Não havia problema na transferência da pá para o balcão. Se não me engano, comi uma ótima lula recheada.
Nessa noite, ao sair do restaurante, um encontro surpreendente: um colega chileno que trabalhara na IBM Brasil vinha pela mesma calçada. Fazia tempo que não nos víamos, mas nos reconhecemos imediatamente. Ele estava trabalhando nos Estados Unidos, ainda na IBM. Jantamos juntos no dia seguinte, e pusemos as notícias em dia.


Terminada minha missão em Tóquio, iniciei a viagem de volta ao Brasil, via São Francisco. O voo foi normal – apenas estranhei sair do Japão de noite e chegar à Califórnia na manhã do mesmo dia. As pessoas hoje em dia viajam tanto que não devem reparar mais nessa volta aparente no tempo, mas realmente me diverti com isso, tanto que não esqueci e conto aqui.
Chegando ao aeroporto, aluguei um automóvel, arranjei um mapa e tomei a autoestrada 101 rumo ao Sul, para Palo Alto, no Vale do Silício. Um percurso que eu viria a fazer muitas outras vezes e agora conheço muito bem.

Saí da 101 na Embarcadero Road, segui até a El Camino Real, virei à direita e cheguei ao Holiday Inn de Palo Alto, onde me hospedei. O hotel ficava bem próximo à Universidade de Stanford. Telefonei para o Nelson Lodge, técnico do time de soccer da Universidade, com quem já havia marcado a visita. Era começo da tarde. Ele enviou seu assistente, o Tony Igwe, para me buscar no hotel. Este, muito simpático e atencioso, logo contou que havia jogado futebol pelo time juvenil de seu país, a Nigéria, e tivera a oportunidade de jogar contra o Pelé. Deu-me a impressão de este fato ter sido a maior honra da vida dele como esportista.


Cassio me contou recentemente que o Tony Igwe jogou na seleção olímpica da Nigéria participando inclusive das olimpíadas de 1968, se não me engano. E que ele realmente jogou pela seleção nigeriana contra o Santos, num daqueles amistosos que este time brasileiro fazia em excursão pelo mundo; claro que jogar contra o Pelé foi uma honra enorme e algo que ele sempre terá orgulho de ter feito — mas o que ele dizia para o Cássio com muita satisfação  é que ele tinha marcado (pois era lateral direito)  "the great Edu," a quem ele considerava o melhor ponta esquerda do mundo. Ele tinha um álbum de fotografias inteiro dedicado a fotos do jogo contra o Santos, e a maioria das fotos era dele disputando a bola com o "great Edu."


Encontrei com o Igwe outras vezes e nosso relacionamento foi sempre cordial.
Stanford me surpreendeu e encantou desde aquela primeira visita, com seu campus parecendo uma bela pequena cidade, muito bem cuidada. Tony me levou ao Departamento Atlético, onde encontramos o Nelson. Este me conduziu em um “tour” pela Universidade, iniciando pelas instalações esportivas – quadras e campos de esportes. Fez questão de me mostrar, com grande orgulho, algo que eu entendia como “waiting room” (sala de espera), quando nos dirigíamos para lá, e não tinha ideia de qual seria sua finalidade esportiva. Na verdade, era “weight room” (sala de pesos) um galpão enorme com todo tipo de aparelhos para exercícios, o que seria hoje no Brasil o salão de uma enorme academia de ginástica. Naquele tempo, quando em nosso País se anunciava com grande alarde o início do uso de um aparelho chamado “Nautilus” por nossos craques de futebol (Reinaldo, centroavante da seleção, foi fotografado se exercitando em um deles) vi, admirado, uma grande quantidade de máquinas daquele tipo na sala de pesos do Departamento Esportivo de Stanford.
Nelson estendeu depois nossa excursão para outras instalações da Universidade, inclusive ao centro do campus, onde ficam a Biblioteca, a ótima livraria, o Correio, lanchonetes, em torno de uma praça bastante frequentada, apesar de ser tempo das férias de verão. Nessa praça fui apresentado ao Vice-Reitor de Admissões, Fred Hargadon, que havia assinado a carta de admissão do Cássio na Universidade.
Falei com o Nelson sobre o Cássio. Não precisei comentar seu futebol porque ele havia assistido ao filme que o professor da Escola Americana tinha distribuído. Comentei o telefonema que recebi do técnico de Clemson e ele se deliciou com a história, pois, fiquei então sabendo, eles competiam por novos jogadores.
Aproveitei para comprar camisetas e agasalhos de Stanford para os filhos.
Foi uma ótima visita. Fiquei certo de que meu filho tinha feito uma ótima escolha e de que teria pela frente um enorme desafio, especialmente nos estudos.
Voltei ao Rio satisfeito e com muito para contar à família e aos amigos.

Washington Luiz Bastos Conceição


Nota:
Cássio, após a graduação em Stanford, empregou-se em uma empresa da região, casou-se e tem dois filhos americanos. Leilah e eu passamos, então, a ter razões ainda mais fortes para viajar à Califórnia, o que fizemos por mais de trinta anos, até quando nossas condições físicas permitiram. Agora, somos visitados no Rio.
Nessas viagens, sempre íamos a Universidade; visitávamos a igreja, a livraria, a biblioteca e fazíamos um lanche na praça central, muito frequentada pelos alunos. E, claro, passávamos pelo estádio, onde vimos a seleção brasileira de futebol jogar na Copa de 1984.



sábado, 18 de abril de 2020

Boleros - Poesia e Romance


Caro leitor ou prezada leitora:
Prosseguindo em meu programa de oferecer aos meus leitores mais de meus escritos neste tempo de isolamento social, apresento-lhe hoje a transcrição de parte do capítulo “A música e eu” de meu primeiro livro, o “Histórias do Terceiro Tempo”.
Dedico esta publicação aos meus contemporâneos que apreciam a romântica música mexicana do tempo em que éramos jovens.



Introdução

Nunca estudei música, não tenho bom ouvido e, quando tento cantar, desafino. Enfim, sou um ignorante que, humildemente, gosta de ouvir vários gêneros de música, desde marchinhas de carnaval, sambas, bossa nova, música brasileira em geral, boleros e tangos, até óperas e música clássica. Variado, não é?
Vocês poderão dizer: “Caramba (ou outra interjeição que costumem usar mais), Washington, deve ser tudo o que os seus contemporâneos curtiram ao longo da vida – qual é a novidade?”.

Boleros – Poesia e Romance

Na minha juventude, em São Paulo, especialmente do meio da década de 1940 até o final dos anos 50, os boleros mexicanos foram muito tocados nos bailes e festas, revezando com os foxes americanos, sambas e, numa certa época, os baiões. As orquestras ou os responsáveis pela vitrola (toca-discos), conforme o caso, procuravam mesclar música lenta, para os namorados dançarem abraçadinhos, com música rápida, para não deixar a coisa ficar muito séria.
Os boleros eram românticos por excelência, com letras apaixonadas, algumas vezes trágicas, mas sempre tratando de amor, paixão, “desesperación”.
Eu era uma exceção entre amigos e colegas, pois, além de estudar Inglês e Francês por necessidade curricular, estudei Espanhol para valer. Comecei cedo, ouvindo as rádios de Montevidéu, Buenos Aires e Assunção, lendo a Para Ti, revista argentina que minha mãe assinava (“Todo lo que interesa a la mujer”), lendo livros em Espanhol, ouvindo tangos e, principalmente, boleros. As rádios Excelsior e Gazeta, de São Paulo, tinham mais de um programa de música mexicana por dia. Numa temporada em que tive de ficar de molho em casa, tratando de um reumatismo sério, eu ouvia uns quatro programas de meia hora por dia, reconhecia a voz dos intérpretes, que não eram poucos, cantava junto, sabia a maioria das letras. Havia os cantores mais antigos: Pedro Vargas e o médico Alfonso Ortiz Tirado, do tempo do meu pai; o barítono Carlos Ramirez; os Fernandos (Torres, Albuerne, Fernandez); Chucho Martinez e, mais tarde, os de maior sucesso, que foram Gregório Barrios e Lucho Gatica. As cantoras tinham geralmente voz grave de contralto e eram intérpretes dramáticas: Elvira Rios, Adelina Garcia, Eva Garza, Toña La Negra e Maria Luisa Landim são nomes que me vêm à memória.
Essa popularidade do bolero trazia cantores para o Brasil com bastante frequência, e houve o caso do Gregorio Barrios, que acabou se radicando aqui, trabalhando até uma idade avançada. Era um tremendo sucesso com as moças.
As letras tratavam de casos de amores não correspondidos (“Quizás, quizàs”), de homens que se apaixonam por mulheres de “vida fácil” (“Pecadora”, “Una aventura más”), de amores impossíveis (“Somos”, “Pecado”), de abandono (“Ya no me quieres”, “Perfidia”), de traições (“Traicionera”), ou eram simplesmente declarações de amor extremamente românticas (“Contigo em la distancia”, “Palabras de Mujer”, “Abrázame asi”).
Entre os autores, o grande destaque foi Agustín Lara, “O poeta da música”, muito lembrado também por ter sido casado com Maria Félix, atriz muito bonita que ele dirigiu no cinema.
Alguns títulos eram retumbantes, referindo-se a mulheres de má conduta, que acabaram dando origem à piada do caipira que foi assistir em uma boate ao show de uma dessas cantoras famosas e, ao ouvir o público pedir a ela aos brados que cantasse “Traicionera”, “Hipócrita”, “Perdida”, “Pecadora” achou que estavam xingando a mulher por alguma razão e acrescentou seu rosário de palavrões.
Mas os versos dos boleros, meus amigos, os versos são uma beleza, pura poesia, e me emociono, até hoje, com eles. Lembro-me de muitos, mas não vou transcrevê-los aqui porque esta história não acabaria nunca. Como exemplo, apenas uns versos de “Solamente una vez”, de Agustín Lara, um dos meus boleros preferidos:

“Solamente una vez, amé en la vida,
 Solamente una vez, y nada más.
…………………………………………………….............
Si una vez, nada más, se entrega el alma
Con la dulce y total renunciación.
Y cuando este milagro realiza el prodigio de amarse
¡Hay campanas de fiesta que cantan en el corazón!”

Cantarolar baixinho versos assim, ao dançar com a namorada, era muito bom, ajudava muito no jogo do amor. Leilah e eu namoramos e noivamos ao som de boleros; depois de casados, continuamos gostando de dançar como antigamente. Em 12 de setembro de 2008, comemoramos 55 anos de namoro – e haja bolero!

Na década de 1960, o bolero foi aos poucos perdendo força no Brasil, com o sucesso da bossa nova, da jovem guarda, de novas danças como o “rock and roll”, de forma que passou a ser uma música dos mais velhos, coisa de coroa. Ainda assim, em 1967, quando fui ao México pela primeira vez, quis trazer para a Leilah um disco com músicas de sucesso de lá, daquela ocasião. No rádio do fusca que eu tinha alugado para conhecer mais da Cidade do México, tão cheia de atrações, e, em especial, para visitar as pirâmides de Teotihuacan, ouvi mais de uma vez uma canção romântica muito bonita, numa interpretação diferente e personalíssima de um cantor que eu não conhecia. A canção era “Adoro”, de Armando Manzanero. Comprei o disco, long-play que contém as melhores músicas que ele compôs e cantou, acompanhando-se ao piano: além de “Adoro”, “Esta tarde vi llover”, “Contigo” e “No”. Embora ele tenha gravado vários discos, em geral bons e agradáveis, o primeiro foi o melhor de todos.
De certa forma, Manzanero fechou o ciclo, completou a coleção de boleros e canções mexicanas que permanecem muito caras para mim e vivas nas recordações de amigos de minha geração.

Washington Luiz Bastos Conceição




sábado, 11 de abril de 2020

O Irmão do Vitório

Cara leitora ou prezado leitor:
Minha crônica anterior "Um casal idoso no tempo do vírus" teve uma recepção extraordinária por parte de meus atenciosos leitores, com números sem precedentes de visitação e de comentários, fenômeno que atribuo a dois fatores. O primeiro é o assunto: o vírus que atualmente nos ataca ferozmente, no Brasil e no mundo todo; o segundo é o fato de grande parte da população estar em isolamento social e, por essa razão, tem necessidade de distração e mais tempo disponível para a leitura.
Pensando em lhe oferecer mais de meus modestos escritos, decidi, enquanto preparo novas crônicas, publicar transcrições de excertos de livros meus.
Começo com um dos três contos que escrevi na minha vida.

Dedico esta publicação aos meus amigos escritores que trilham, com sucesso, o difícil caminho da ficção.



O irmão do Vitório

Nos anos 50 do século XX, São Paulo era uma cidade bem diferente. As atividades de trabalho se concentravam no centro comercial que, naquela época, compreendia a área que ia da Praça da Sé à Praça do Patriarca, ligadas pela Rua Direita, e também incluía, de um lado, a Rua XV de Novembro, a rua dos bancos, e, do outro, o Largo de São Francisco.
No centro mais novo, do outro lado do Viaduto do Chá, cujo eixo era a Rua Barão de Itapetininga, já estavam as lojas mais finas da cidade, mas o burburinho se concentrava no outro lado.
O escritório de Renato, advogado, cinquenta e poucos anos de idade, ficava na Rua José Bonifácio, mas ele passava a maior parte do tempo no foro, no alto da Praça da Sé. Almoçava, por ali, em restaurantes comerciais, e circulava bastante por aquela área.
Era normal ele encontrar conhecidos, diariamente, conversar ligeiramente e, quando possível, tomar um cafezinho com eles. Café de coador, num dos vários bares do centro.
Às vezes, encontrava pessoas que, talvez por vê-lo com frequência (numa fila de ônibus, por exemplo), faziam confusão e  falavam com ele; e nenhum dos dois sabia exatamente de onde conhecia o outro.
Mas um fato começou a intrigá-lo demais. Pelo menos uma vez por semana, uma pessoa o cumprimentava na rua, parava, perguntava como estava e, percebendo que ele não a estava reconhecendo, perguntava: “Mas você não é o irmão do Vitório?”. Renato não tinha nenhum parente chamado Vitório e esclarecia logo que o outro estava enganado.
Semanas se passavam e, de vez em quando, voltava o encontro e a pergunta. As pessoas variavam, embora algumas repetissem a abordagem.
Renato tentou, então, mudar um pouco sua aparência. Não podia fazer nada radical, por causa de seu ambiente de trabalho. Era magro e alto, o que não iria alterar, mas poderia variar um pouco a cor dos ternos, raspar o bigode e usar óculos de lentes sem grau, pois só usava óculos de leitura. Pintar o cabelo lhe traria problemas, no trabalho e socialmente. Naquele tempo, não era comum homens da classe média, chefes de família, pintarem o cabelo.
Pois, mesmo sem bigode (o que os amigos e colegas estranharam muito) e de óculos, continuaram a confundi-lo com o irmão do Vitório. Resolveu, então, tentar descobrir quem era o Vitório e o irmão dele, cujo nome ninguém dizia. Ele temia até ter algum problema, caso seu sósia aprontasse alguma encrenca. Por exemplo, este poderia brigar com alguém que depois buscasse revanche, poderia estar namorando a mulher de um sujeito violento, criando situações de risco em que Renato não tivesse tempo de provar que ele não era o “irmão do Vitório”.
A sorte o ajudou quando, depois de algum tempo, alguém completou a pergunta com o sobrenome do Vitório: “Você não é o irmão do Vitório Pugliese?” A resposta, claro, foi a mesma: “Não, você está enganado, não sou o irmão do Vitório”. Porém, desta vez, afinal, ele teve uma pista – o sobrenome do irmão do Vitório, muito provavelmente, seria também Pugliese.
Naquele tempo não havia o Google, nem internet, nem computador, mas havia a Lista Telefônica. Renato, no escritório, resolveu consultá-la – aquele livrão de capa mole amassado pelo uso de todo o pessoal – buscando o nome de Vitório Pugliese. Após algumas tentativas que não levaram a qualquer pista, conseguiu falar com uma senhora. Contou-lhe o que vinha acontecendo e disse que queria conhecer o sósia ou, pelo menos, saber o nome dele. Ela, embora parecesse desconfiada, confirmou que seu marido tinha dois irmãos, um deles morava em São Paulo e o outro no interior. O nome do primeiro era Pascoal, mas não tinha telefone em casa. Terminou, dizendo que, se quisesse mais informações, seria melhor ele ligar à noite, depois das sete, e falar com seu marido.
Naquele dia, ficou até mais tarde no escritório para poder telefonar, pois não tinha telefone em casa. Morava em um bairro novo, longe do centro; para telefonar, tinha de ir à farmácia, umas três quadras de sua casa e, assim mesmo, contar com a boa vontade do farmacêutico e enfrentar uma fila. O pior é que não tinha jeito de avisar sua mulher de que ia chegar mais tarde e ela certamente ficaria preocupada com seu atraso – era o preço de ser um marido sério e disciplinado!
Conseguiu falar com o Vitório, repetiu a história para não parecer que se tratava de algum trote ou conto do vigário, O Vitório lhe contou que o irmão também trabalhava no Centro, no Banco do Estado de São Paulo. Acabaram rindo juntos com a possibilidade de um dia os sósias se encontrarem, não chegaram a combinar nenhum encontro. O Vitório não trabalhava no Centro.
Tranquilizado com as informações sobre o “Irmão do Vitório”, Renato se despreocupou com o assunto e deixou de procurar se “disfarçar”, voltando a usar bigode e abandonando os óculos de mentira.
Um dia, meses após o telefonema ao Vitório, Renato leu no obituário do jornal, a notícia do falecimento de Pascoal Pugliese, funcionário do Banco do Estado. Em uma breve nota, a descrição do acidente: Pascoal havia sofrido uma queda ao descer do bonde, bateu a cabeça, foi internado em estado grave e veio a falecer.
Abalado com a triste notícia, pensou em, pelo menos, comparecer à missa de sétimo dia e dar os pêsames à família. Mas desistiu logo, imaginando a cena de sua chegada à Igreja – daria um susto em muita gente, com possíveis desmaios.
Conseguiu o endereço do Vitório e lhe enviou um telegrama de pêsames, esperando que ele se lembrasse de que Renato era o sósia do irmão.
Restou ao Renato a expectativa de quais seriam as reações dos conhecidos do Pascoal e do Vitório ao encontrá-lo novamente. Talvez viessem a se assustar ao vê-lo, abrindo a boca admirados e dizendo qualquer coisa como: “Desculpe-me, mas o senhor é muito parecido com um amigo já falecido”. Pelo menos até se aposentar e se afastar do centro da cidade, teria de contar com aqueles encontros.

Washington Luiz Bastos Conceição