Na crônica “Pensamento
Mágico”, publicada no caderno da Copa 2014 do Jornal O Globo em 5 de julho último,
Luiz Fernando Veríssimo contou que inventou um futebol de mesa com tampinhas de
garrafa. Embora eu tenha conhecido o jogo de tampinhas quando, menino, passei algumas temporadas no Paraná, onde nasci, meu futebol de mesa, em São Paulo, foi o de botões. Pela semelhança, essa crônica mexeu com minhas recordações de
infância e adolescência e me apressou a atender, hoje, às sugestões de dois
leitores amigos para que eu escrevesse sobre o jogo de botões, pois várias das histórias que conto são
semelhantes àquelas que eles próprios viveram.
Lembro-me de ter
começado a jogar futebol de botões aos oito anos de idade e de só ter
abandonado totalmente esse “esporte” à altura dos quinze anos, ou seja, desde
os tempos de escola primária até o início do científico. Ao longo desses anos,
mudei algumas vezes de bairro e de escola e, consequentemente, de amigos e
colegas. Todos eles jogavam mas, geralmente, com diferentes tipos de botões (os
“jogadores”), de bola, de traves e de “campos”. O que não variava era a
quantidade de jogadores (os onze do futebol real) e a colocação deles, que
seguia a formação dos times daquele tempo: o goleiro (que não era botão, mas
sim uma caixa de fósforos com peso dentro), dois “beques”, três “alfos” (os médios) e cinco
na linha (os pontas, os meias e o centroavante). De quando comecei, no colégio
primário, lembro-me apenas de que o campo era um pequeno terraço de cimento
liso e que formei meu time comprando vários números de uma rifa – eram botões
grandes, talvez de casaco, vermelhos, e que deslizavam muito bem no “campo”.
Desta fase inicial, não me recordo como era a bola (talvez de papel alumínio
das embalagens de cigarro), as traves e as regras.
Aos nove anos, quando a
família se mudou para a Rua Oscar Freire, em Pinheiros, quase na esquina com
Teodoro Sampaio, fiz alguns amigos na vizinhança. O pai de um deles, o Plácido
Mainardi, o Cidinho, tinha uma loja de calçados na Teodoro, com um amplo subsolo
que, no fundo, tinha uma janela ampla que dava para uma encosta. O local era,
pois, arejado e muito espaçoso, de forma que, embora servisse de depósito para
caixas de sapato, dava para uns três ou quatro garotos brincarem, até dar uns
chutes a gol. Contudo, nossa principal atividade, lá, era (como dizíamos) “jogar
botão”. Nessa “liga”, os botões eram aqueles de galalite (plástico duro de
antigamente), fornecidos com as cores e distintivo dos clubes, e as traves –
ah, as traves – eram caixas de sapato recortadas. A parte interna da caixa
retinha as bolas que entravam no gol, fazendo o papel de rede. O retângulo
vazado em cada uma tinha dimensões adequadas ao jogo, mas as traves resultavam
bem largas. Havia mais chutes à trave do que gols. Mais uma vez, não me lembro do tipo de bola que usávamos,
só me lembro de que
dava para chutar encobrindo o goleiro (este, de caixa de fósforos). A regra era
jogar “controlando” a bola até o chute ou a perda ao tocar no jogador
adversário – havia, até, “offside” (impedimento). O campo era uma mesa de cerca
de um metro e meio por uns setenta centímetros, devidamente demarcada. No
campeonato, fiquei com o time do Palestra Itália, um dos “três grandes” do
campeonato paulista, que em 1941 ainda não era Palmeiras.
Nesse tempo, eu treinava sozinho em casa, no chão da copa, onde havia um linóleo. Em uma ocasião, uma amiga de minha mãe que estava passando uns dias em casa ficou intrigada e se divertiu muito com a exclamação do garoto: “Perdi o meu Pipi!”. Era o que eu exclamava, me lamentando. Acontece que Pipi era o ponta esquerda do Palestra (que formava ala com o Lima, o craque do time) e eu não achava o botão. Depois, descobrimos que ele tinha ido parar embaixo da geladeira.
Nesse tempo, eu treinava sozinho em casa, no chão da copa, onde havia um linóleo. Em uma ocasião, uma amiga de minha mãe que estava passando uns dias em casa ficou intrigada e se divertiu muito com a exclamação do garoto: “Perdi o meu Pipi!”. Era o que eu exclamava, me lamentando. Acontece que Pipi era o ponta esquerda do Palestra (que formava ala com o Lima, o craque do time) e eu não achava o botão. Depois, descobrimos que ele tinha ido parar embaixo da geladeira.
Aos dez anos fui passar
o segundo semestre em Ponta Grossa, Paraná, na casa de meus tios padrinhos. Lá,
fiz amizade com alguns amigos da vizinhança, especialmente com um piá (menino)
da minha idade, o Nacib Tebcherani, e outro mais novo, o Moisés Judkovitch. Eles
não jogavam botão, o futebol de mesa deles era com tampinhas de garrafa.
Diferentemente do caso dos botões, impulsionados mediante um “apertador” (uma
ficha com a qual se pressiona o botão) as tampinhas eram movimentadas mediante
piparotes com o dedo indicador. O campo do Nacib era um tabuleiro de madeira
forrado, de cerca de um metro por cinquenta centímetros, colocado sobre uma
mesa. As traves eram menores do que as do jogo de botões e os goleiros eram
tampinhas amassadas preenchidas com uma massa (cera de abelha, talvez) para lhes dar
peso. Novamente, tenho dúvidas sobre o material utilizado para fazer a bola. A
quantidade e colocação dos jogadores correspondiam também ao futebol real.
Apesar das diferenças em relação aos botões, consegui jogar com eles, com
alguma desvantagem pela falta de prática. Pelo jeito, era o mesmo jogo que o
Veríssimo mencionou em sua crônica. Assim mesmo, na casa de minha tia, eu
também jogava botão, sozinho, com um time que montei lá. Na volta a São Paulo,
retomei o jogo de botões. No segundo semestre do ano
seguinte, fiz nova temporada em Ponta Grossa e repeti o programa.
A seguir, em 1943, fui
morar em Heliópolis, então um pacato bairro afastado do centro de São Paulo onde tive
vida de cidade de interior daquele tempo. Lá, fiz novos amigos e, entre várias
atividades, jogamos muito botão. Foi a fase mais importante em minha história
do futebol de botões, pois disputávamos campeonatos de forma regular, seguindo
uma tabela, com juiz, sempre que possível, e fazendo uma súmula das partidas.
Neste ponto, acho
melhor transcrever, de meu livro “Histórias do Terceiro Tempo”, a descrição de
nossos jogos de botões em Heliópolis, apresentada no capítulo “Nos tempos de
Heliópolis”.
O jogo de botões e os jornalistas
esportivos
No campeonato de botões, como era uso em toda parte, o time de cada
participante correspondia a um time do campeonato principal da cidade. O nosso
campeonato em Heliópolis tinha Corinthians, São Paulo, Palmeiras, Portuguesa,
Santos, Ipiranga, Jabaquara e Nacional, pelo menos. Como o Bertinho (meu amigo
Gilberto) era o mais velho e corinthiano mais antigo, ficou com o Corinthians.
Eu fiquei com o São Paulo. Os outros participantes, todos do bairro, ficaram
com os outros times.
Os botões eram, na verdade, fichas grandes de uns dois centímetros e
meio de diâmetro, com propaganda do Café Paraventi. Já existiam botões
específicos para o jogo, mas não eram apropriados para nossa forma de jogar.
Comprávamos as fichas e as raspávamos para deslizarem no chão sem saltar e,
quando necessário, levantar a bola. Os goleiros eram de caixa de fósforos, com
chumbo dentro para devolverem melhor a bola e resistirem ao impacto dos
jogadores. Usávamos bolas esféricas de cortiça, com cerca de um centímetro de
diâmetro, que nós mesmos fabricávamos a partir de rolhas de garrafa, cortando
inicialmente como um cubo, a seguir aparando as arestas, formando poliedros, e
depois lixando até obter a forma esférica. Exigia habilidade, tempo e
paciência. As traves eram de madeira com rede de filó, em tamanho padrão, que
também fabricávamos nós mesmos.
Os jogos eram cronometrados com um despertador e era designado um juiz
para dirimir dúvidas.
As regras eram relativamente complicadas mas todos as conheciam muito
bem.
Pomposamente, chamávamos a nossa organização de F.H.F.B., ou seja,
Federação Heliopolitana de Futebol de Botões.
Após os jogos, publicávamos as reportagens em nosso jornalzinho
manuscrito, “O Esporte Mirim”, usando o mesmo tipo de linguagem dos jornalistas
do "O Esporte". Este era o jornal que líamos às segundas feiras para sabermos os detalhes da
rodada do Campeonato Paulista. Era impressionante nossa imaginação ao
descrevermos as jogadas dos botões como se eles fossem gente, jogadores de verdade!
O Bertinho e eu revezávamo-nos na produção do jornal, sempre que tínhamos tempo
para fazê-lo.
Pois, pasmem! Outro dia, examinando material antigo, dentre livros,
discos, fotos, etc., para separarmos o que iríamos conservar ou não, achei uma
amostra desse jornalzinho nosso.
Não resisti à tentação de transcrever dois trechos das notícias, porque
espero que, como eu, vocês se divirtam com elas:
Quando um dos amigos desistiu de jogar botão, outro o substituiu com o
time do Santos. Noticiei assim:
“Santos, 22 – Foi empossada ontem, dia 21, a nova diretoria do Santos
F.C.. A cerimônia teve início às 19 horas, culminando com o prélio amistoso em
que se defrontaram as equipes do Santos e do C. A. Ipiranga, que, num gesto
digno de louvor, se ofereceu para abrilhantar a noite de ontem, tão importante
para as cores do clube praiano. ...”
Nessa mesma semana, o Waldir Balsimelli, que era mais novo do que eu
e era principiante, foi jogar comigo, no
terraço de minha casa. O time dele era o Santos, o meu o São Paulo. Foi um jogo
amistoso em que ganhei facilmente. Noticiei assim:
“Visitando nossa capital ontem, dia 24, a equipe do Santos F.C., da
vizinha cidade praiana, preliou com o quadro do S. Paulo F.C., no Estádio
Municipal do Pacaembu. ... Decorrente de sua maior presença no gramado, o
S.Paulo triunfou por uma larga margem de tentos. ...”
A atuação dos jogadores também era analisada. O centro avante era uma
ficha dupla que ficava avançada e a bola parava nele para chutarmos a gol com
os meias (fichas simples) – por isso estes eram os artilheiros. A atuação do
meia Yeso e o centro avante Leônidas (na vida real, “O Diamante Negro”) foi
assim avaliada:
“Yeso: Foi o artilheiro, marcando cinco gols, aproveitando todas as
oportunidades. Leônidas: Distribuiu várias bolas para os meias, apesar de não
ter assinalado nenhum tento.”
Eu não era tão criança assim, tinha 14 anos, mas a imaginação ainda era
rica.
Quem terá guardado o jornalzinho? Talvez, minha mãe.
Depois dos tempos de
Heliópolis, outras atividades fizeram com que eu deixasse de jogar botão. Além
disso, pelos costumes da época, já tinha passado da idade. Esporadicamente, joguei
ainda umas poucas partidas com meu amigo Sérgio Bastos, para relaxarmos um pouco
dos estudos, e com meus primos de Paranaguá, quando, aos vinte anos, fui visitá-los.
Mais moços do que eu, jogavam em uma mesa de pingue-pongue e um deles irradiava
as partidas.
Essas recordações,
agora, me impressionam por quanto havia de imaginação nesse jogo: os botões
eram jogadores, sendo o goleiro uma caixa de fósforos; mesas, terraços ou soalhos se tornavam campos de grama; os toques
dos botões na bola tinham as variações e sutilezas dos chutes reais; e, ainda, quando a
bola batia em um botão era uma cabeçada do jogador.
Em seus
variados aspectos, acima de tudo, jogar botão era um exercício fantástico de imaginação.
Washington Luiz
Bastos Conceição
Ah, meu amigo Washington, quantas boas recordações dos jogos de botões!
ResponderExcluirMe lembro muito bem de jogar com meu pai. Eu gostava muito de jogar com ele, principalmente após voltarmos dos jogos do São Paulo (nesses dias ele não gostava muito de jogar, porque chegava cansado). Consumava jogar muito sozinho também e organizava meus campeonatos com tabelas, irradiação e tudo mais - eu fazia tudo, era os dois técnicos, o juiz e também o irradialista (gostava de imitar o Fiori Gigliotti), repórter de campo e comentarista!
Depois de adulto, voltei a me encontrar com o jogo de botão. Costumávamos jogar no horário do almoço no escritório da empresa em que trabalho. Os botões eram bem mais modernos e "profissionais", e as regras eram ligeiramente diferentes. Com o tempo, essa prática foi morrendo, infelizmente, pois era bem relaxante.
Mas o que gostei mais e lembrar foram os momentos jogando com o meu pai.
Seu post me deu vontade de jogar novamente. Que tal uma partidinha?
Um grande abraço e obrigado por essas memórias!
Fico muito satisfeito quando minhas recordações provocam as dos leitores. Quanto a a jogar com você, é uma boa ideia, mas eu levaria meu neto e atuaria como juiz.
ResponderExcluirRetribuo o abraço.
De minha prima Isa:
ResponderExcluirUma delícia o seu Jogo de botões. Mesmo sem entender de futebol, lembro desses jogos tão curtidos pela piazada. O jornalzinho, então, uma preciosidade, um capricho, uma graça, o embrião do escritor em formação. Ainda bem que alguém, provavelmente sua mãe, teve a lembrança de preservar essa peça. Posso imaginar nosso primo, lá em Paranaguá, "transmitindo" os jogos, ele que, mais tarde, foi locutor de uma rádio aqui em Curitiba, o que motivou uma mãe zelosa dizer à filha que flertava com ele: "Minha filha, essa gente de rádio não é de confiança, não leve avante esse namoro"...Pois é: eram tempos caretas demais. Me ensine à distância como posso fazer meus comentários direto no seu blog. Um abraço. Isa
Obrigado prima, pela atenção e pelo comentário. Sabendo do que você me contou agora, imagino o arrependimento da mãe da moça depois que o garoto do rádio fez uma brilhante carreira de juiz e desembargador.
ExcluirMeu abraço.
Ola Washington . Do seu primo Sergio .
ResponderExcluirLembro muito dojogo de botoes quando tinhamos doze treza anos , fazinhamos torneios de grande nivel com muitos Irmaos e preenchendo com alguns primos e amigos . Marcelo e Paulo eram os mais poderosos, com jogadas de bola parada (as faltas), conseguiam fazer goal sempre. Pena que hoje em dia, pelo menos aqui na Italia, nao jogam mais. Obrigado por relembrar muito momentos bons que passamos quando criança . Sergio Cavichiolo