quinta-feira, 10 de abril de 2025

D. Izaura e sua gente – Leilah na Galvão Bueno

Cara leitora ou prezado leitor:

Esta é a terceira crônica da série, precedida da “D. Izaura e sua gente – Introdução” e da “D. Izaura e sua gente – A casa e os moradores”.

É provável que os leitores estejam curiosos sobre a aparência de D. Izaura. Fotos nos tempos antigos, muito diferentemente do que temos hoje (fotos coloridas tomadas por celulares em qualquer encontro de pessoas) eram raras e resultavam em retratos sérios, em branco e preto, em que as pessoas raramente sorriam. Apresentarei, ao  longo das crônicas, fotos ilustrativas com essas características. Para começar, uma foto de D. Izaura, já idosa, à vontade, em casa.


No final da segunda crônica, anunciei:

“Na próxima crônica, minha esposa vai contar o que sabe de D. Izaura e sua gente em período anterior à minha entrada em cena. Os pais dela, quando se casaram,  também moraram na Galvão Bueno e lá permaneceram mais alguns anos depois que ela nasceu. Ou seja, Leilah também foi moradora da casa da Galvão Bueno.”

Portanto, com a palavra, a Leilah:

“Washington me pediu para que eu contasse a estória de antes da chegada dele à casa da Galvão Bueno. Traduzindo, significa contar o início da minha vida, pois nasci em um dos quartos do casarão, tão importante neste relato.

Meus pais, Francisco e Apparecida, se casaram quando meu pai tinha 26 anos e minha mãe, 19 incompletos.  Conheceram-se nos bailinhos em clubes frequentados pela mocidade daquele tempo. Minha mãe ia com as irmãs e primas e meu pai com seus irmãos. Papai trabalhava na fábrica de moveis escolares do meu avô, fabrica esta fundada em 1912 e muito conceituada no mercado. Ele não era rico mas mamãe comentava, com orgulho que, quando ainda era noiva, o via passar no automóvel do meu avô indo para o trabalho. Noivaram, porém tiveram tempos difíceis porque a madrasta do meu pai, Dona Catarina, italiana muito rígida, era contra um casamento fora da colônia. Meu avô se casara com ela após ficar viúvo durante a gripe espanhola em 1918 (e tinha de criar seis filhos).

Mamãe aceitava o fato, talvez com resignação, mas vó Izaura foi à casa dos Mellone discutir o assunto. Infelizmente, não foi bem-sucedida, não conseguiu persuadir D. Catarina a aceitar o casamento.

Apesar dos percalços, o casamento foi marcado para 8 de fevereiro de 1932. Mamãe acabara de concluir o curso de professora de piano no famoso Conservatório Musical de São Paulo e se preparava para a nova vida. O plano do casal era alugar uma casa para morar, mas teve de ser modificado por um acidente: um incêndio prejudicou profundamente a fábrica de móveis do meu avô (onde meu pai trabalhava). Até os móveis que papai estava fabricando para sua nova casa se foram.

Jovens e otimistas, os noivos não quiseram adiar o casamento e, com o apoio de D. Izaura e Seu Juca, mantiveram a data. O casamento aconteceu festivamente, com amigos e familiares, mas com a ausência da família do meu pai. Somente o tio Donato, irmão caçula do meu avô, compareceu; e foi padrinho da cerimônia...

 

Francisco e Apparecida

Após uma curta viagem de lua de mel ao Rio de Janeiro, os recém-casados se instalaram em um dos quartos do casarão. Certamente, minha avó Izaura e sua mãe, minha bisavó Ritinha (que também morava lá), deram o maior suporte, até papai se equilibrar financeiramente. Isto fez com que eu nascesse no casarão, assistida por uma parteira, e ficasse por cinco anos naquele ambiente  familiar descrito pelo Washington.

Vale a pena resumir quem morava lá nesta ocasião: meus avós, todos seus filhos, dos quais somente Tia Yolanda e minha mãe eram casadas. As crianças da casa éramos eu e o Sergio (filho de Tia Yolanda e Tio Lauro), dois anos mais velho do que eu. Neto mais velho, garoto mimado, adorado pelos tios, era meu primo e irmão.”


Leilah deixou a Galvão Bueno aos cinco anos, de forma que ela veio a obter as informações da família ao longo dos anos, à medida que as histórias lhe eram contadas. Pôde, também, observar as pessoas e acontecimentos nas visitas à casa dos avós. Devolvo a palavra a ela:

“Dona Ritinha, mãe da Vó Izaura, morava com eles. Não cheguei a conhecê-la, mas aqueles que conviveram com ela diziam que era uma pessoa muito calma e bondosa e, já idosa, não tinha o comando da casa. Tinha uma neta predileta que dormia com ela. Era muito querida de todos da família que a conheceram.

Vó Izaura tinha  três irmãos, Eduardo, Henrique e Milton, e duas irmãs, Alice e Luiza. Agregadora e irmã mais velha, liderava. Os irmãos Eduardo e Milton (o caçula) se casaram e, em situações pessoais difíceis, os casais se valeram de sua hospedagem.

Eduardo morreu cedo e deixou a esposa, Sofia, e uma filha, Abigail (Biá era o seu apelido) que era da idade de minha mãe (Cida); também se formou em piano no Conservatório. Sofia, sua mãe, tinha habilidades culinárias e em trabalhos manuais. O crochê que ela fazia era uma verdadeira renda e com isso ela se manteve e educou a filha. Morava também no sobrado da Galvão Bueno. Na cozinha, ela criou um pastel delicioso cuja receita passou para minha mãe. Eu nunca soube a receita completa, mas mamãe se orgulhava da massa: não levava ovos e usava banha (gordura de porco).  Mais tarde, mamãe, mestre nos pastéis, os preparou a vida toda. Meus filhos adoravam o pastel da vó Cida com a maior variedade de recheios. Mas, voltando a Sofia, ela só saiu da casa da vovó quando a Abigail se casou.

Henrique teve uma vida aventurosa; sei, apenas, que ele passou uns tempos em Buenos Aires e voltou misturando o português com o castelhano. Como usava “Yo” (em vez de “eu”) ao conversar, ganhou o apelido de “Jô”. Também morou uns tempos com a minha avó.

Milton se casou e teve dois filhos: Zuleika e Reinaldo. Tio Milton, como era conhecido, se separou da esposa e os filhos acabaram sendo criados pela minha avó. Interessante: como vovó teve muitos filhos, os agregados sempre tinham um primo ou prima com a idade deles. Assim como Cida e Biá, Reinaldo era da mesma idade do Armando, caçula da vovó. Zuleika regulava com a tia Olga; ela era muito bonita e se casou com o Cunha, balconista de uma conceituada casa de tecidos de São Paulo. Ela saiu da casa da vovó no dia em que se casou. Esse Cunha, acho que para agradar a família, me deu um corte de um novo tecido, chamado albene. Tio Milton era expansivo, falante e muito amigo dos sobrinhos mais velhos, o Doutor e o tio Neno (apelido do Gentil). Ele tinha uma sapataria à rua  da Liberdade. Não sei por quê, foi ele que comprou o piano para a mamãe em 1932, segundo recibo que ainda temos.

Como já disse, vovó tinha duas irmãs. A Alice se casou com um vendedor de uma loja de pianos.  Ele era exímio afinador de pianos, profissão hoje quase em extinção. O casal teve muitos filhos, os quais conheci. A tia Izaura era muito respeitada por eles e os primos eram muito chegados.

A  Luiza, irmã caçula da Vó Izaura, se casou com um italiano muito rico: Ernesto Giuliano. Não sei como ela o conheceu, mas ele foi decisivo na vida dela. Ele era rico, de modo que a tia Luiza se tornou, para nós, a tia rica que muitas pessoas têm na vida.”


Como D. Izaura é a protagonista destas histórias, venho comentar que, além de agregadora e generosa, ela exercia sua firme liderança e tinha suas regras.

Um dos exemplos marcantes de sua atitude foi o caso com a Zuleika, sobrinha que ela abrigou e que, ao se casar, levou uma empregada excelente da casa. D. Izaura rompeu definitivamente suas relações com a moça e a considerava falecida.

Como avó, não era apenas atenciosa com os netos. Por exemplo: Leilah me conta que depois que seus pais e ela se mudaram para a Vila Pompeia, D. Izaura ia visitá-los às sextas-feiras. Nessas visitas Leilah, já menina crescidinha, era entrevistada pela avó, que perguntava sobre seu comportamento, seu progresso nos estudos, suas tarefas domésticas, mostrando seu interesse como educadora.

Por outro lado, por sua disposição e sua resistência física, D. Izaura ganhou dos filhos e genros (pessoas muito interessantes de quem falarei) um apelido: “Perpétua”. O fato de, hoje, guardarmos suas lembranças justifica o apelido.

Washington Luiz Bastos Conceição


Nota:

A Biá (Abigail) se casou com Antônio Martins Barros, em 1932. Também estabeleceram residência na Liberdade e D. Sofia os acompanhou.. Tiveram seus filhos em São Paulo. Mudaram-se para o Rio em 1948, quando Barros foi convidado para chefiar a filial da Casa José Silva Tecidos. Eu, ainda estudante, conheci o Barros numa visita que ele fez ao sobrado, mas só conheci sua família quando, em 1970, nos mudamos (Leilah, eu e os filhos) para o Rio. Encontramos Biá e Barros e ficamos muito amigos de seus filhos e respectivos cônjuges, que, infelizmente, já nos deixaram. Hoje, mantemos uma bela amizade com um dos netos do casal, da geração de nossos filhos. Ele é, portanto, bisneto carioca de Eduardo, irmão de D. Izaura. Chama-se Luiz Eduardo.

2 comentários:

  1. Da leitora Barbara Andersen: Como as famílias eram acolhedoras e solidárias, as gerações conviviam muito mais. As famílias de hoje são bem menores e muitas se mudam para longe das famílias de origem em busca de melhores oportunidades. O apoio acaba vindo de grupos de amigos, religiosos, esportivos ou de trabalho. Muito interessante, Washington! Obrigada por compartilhar, um abraço pra Leilah e você!

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  2. Do Gentil, amigo e escritor: Gostei de conhecer D. Izaura. Fez-me lembrar de minha única irmã. Achei formidável este relato a duas “vozes”. Ficou excelente o texto. Acabei de ler para a Jó. D. Izaura foi realmente uma grande figura. Meus pais se casaram em 21 de abril de 1925, mesmo dia e mês dos meus avós maternos. Minha filha Bárbara e Antonio repetiram a data. Sangue mineiro.

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