O velho levantou cedo. Preocupado, não havia
dormido direito, pois aquele dia seria muito especial. Sua mulher ia sofrer uma
segunda cirurgia no mesmo quadril, uma substituição de prótese - operação
dupla, portanto. Seria internada aquela manhã.
O velho tomou banho, barbeou-se, caprichou na
aparência para não parecer abatido.
Como de habito, foi à cozinha preparar o café da manhã. Pôs a água para
ferver na chaleira - 500 ml; sobre o bule, o filtro de papel em seu suporte.
Tirou o pequeno pote de café do armário e deitou duas medidas do pó no filtro.
Quando a água entrou em ebulição, derramou-a no
filtro. O cheiro agradável do café ao receber a água se espalhou pela
cozinha.
Fazia tudo automaticamente, por força do hábito
(desde a cirurgia anterior, mais de dois anos atrás, ele assumira algumas
tarefas na casa). Mas seu pensamento, vagando entre lembranças, se fixava no que
iriam enfrentar naquele dia.
Deixou o café coando e foi à geladeira apanhar o
mamão, a manteiga e o leite; no armário, pegou os talheres e pratos de
sobremesa e arrumou a mesa. Só para um; hoje, tomaria o café sozinho, pois sua
mulher tinha de se manter em jejum.
A seguir, foi ao quarto acordá-la, estava na hora
de ela se levantar e se preparar para sair. Já estava acordada e disse
que estava bem.
O velho voltou à cozinha para terminar o café. Esquentou
o leite na xicara usando o forno de micro-ondas e tostou os pães na
sanduicheira. Levou tudo à mesa e tomou o café rapidamente, mas não se esqueceu
do remédio para controle da pressão.
Durante todo o tempo pensava no que poderia
acontecer naquele dia: a cirurgia deveria ser um sucesso, pois sua mulher,
embora quase octogenária, era forte e saudável. Pela bateria de exames clínicos
que fez para a avaliação do risco cirúrgico, estava bem, suportaria muito bem
a operação. Ela estava, porém, muito preocupada e queria deixar tudo
organizado para o caso de vir a morrer. Nos dias que precederam a operação, explicou
ao velho como fazia suas tarefas administrativas e financeiras da casa e da
família, separou documentos, inclusive a escritura de autorização para sua
cremação e fez recomendações diversas.
O velho não achou graça, não era hora de achar
graça, mas manteve seu otimismo. Lembrou-se de um comentário de seu
pai, feito havia muitos anos. Este lia, todo dia, o jornal todo, até os
anúncios fúnebres, mesmo quando a classe dele ainda não estava sendo convocada
para o descanso eterno (o Estadão dedicava uma folha inteira aos anúncios). Comentava
que os homens, com exceções muito raras, faleciam antes das respectivas esposas,
pois os anúncios, quando se referiam ás mulheres, diziam: “viúva do Sr. Fulano
de Tal”; e, no caso do falecido ser homem, mencionava: “deixa viúva D.
Beltrana”. O velho se lembrou dessa observação de seu pai, o que reforçou sua
expectativa de que a operação seria um sucesso.
Ela se levantou, banhou-se, vestiu-se e ficou
pronta para sair.
O velho se vestiu, pegou a pasta em que reunira,
na véspera, todos os documentos e papéis necessários para a entrada no hospital
e fez uma última verificação; pegou, também, a sacola com a roupa e os acessórios
de que ela iria precisar no hospital.
Estavam ambos prontos, esperando a filha que iria
buscá-los em seu automóvel. Esta chegou na hora combinada (eram seis da manhã)
e os esperou embaixo, na garagem do prédio. A esposa, que caminhava com
dificuldade, muniu-se da bengala; o casal saiu do apartamento, bateu a porta e
tomou o elevador.
Deixar a casa foi um momento marcante para eles.
Chegando ao hospital, um dos recepcionistas foi
buscar a paciente no automóvel com uma cadeira de rodas, a filha a ajudou a
sair do carro e sentar-se na cadeira; o velho dirigiu-se à recepção do hospital
para fazer o “checkin”. Como tudo tinha sido devidamente providenciado, com a necessária antecedência, não houve dificuldade e a paciente foi levada imediatamente para o
quarto em que seria preparada para a cirurgia. Essa preparação, feita pelos
profissionais de enfermagem, incluiu desde a troca de roupa até a colocação do
dispositivo de acesso dos medicamentos líquidos em uma veia da mão. O velho e a
filha permaneceram no quarto. A médica, clínica da paciente, que fizera todo o trabalho de
avaliação do risco cirúrgico, visitou-a antes de se dirigir à seção de
cirurgia, pois ela iria acompanhar todo o trabalho do cirurgião e seus
assistentes.
Lá pelas dez horas, a médica anestesista, uma
senhora de alto astral, que já havia feito no consultório uma avaliação da
paciente e lhe deu as instruções específicas, iniciou o trabalho de preparação da
cirurgia: procurando transmitir otimismo, animou a paciente e os acompanhantes,
enquanto o sedativo preliminar era aplicado. Às onze, a paciente foi
transferida, já sonolenta, da cama para a maca e retirada do quarto rumo à
seção de cirurgia. O velho sentiu fortemente aquele momento emocionante de
despedida, quando chamamos Deus para nos proteger. E mais, a sensação de vazio
e de impotência para ajudar, a não ser rezando fortemente.
O jeito foi se distrair com coisas corriqueiras:
tomar um café, depois almoçar, e movimentar-se pelo hospital.
Depois do almoço, o velho subiu para a sala de
espera da sessão de cirurgia, um espaço do andar com o balcão e o posto de
trabalho da atendente, vários assentos e, como de hábito, a televisão. Já havia
algumas pessoas na sala, parentes e amigos de outros pacientes que, como o
velho, estavam tentando acompanhar o desenrolar das operações mediante
comunicação periódica da atendente com as salas de cirurgia. O velho tirou o
seu “tablet” da pasta e mergulhou na leitura de um daqueles livrões, de Ken
Follet, “Queda de gigantes”, romance histórico, que certamente iria ajudá-lo na longa espera. Inicialmente, tinha apenas a companhia da filha,
mas logo chegaram os outros filhos, as noras e até a cunhada, que veio de São
Paulo. Todos procurando animar o velho, mostrando confiança de que sairia tudo
bem. Ao longo da tarde, ele interrompia frequentemente a leitura e ia pedir
notícias à atendente; esta, habituada com esse tipo de trabalho e demonstrando
empatia, transmitia as notícias de cada etapa do procedimento: “a paciente está
sendo preparada”, “a paciente foi anestesiada e levada para a sala de cirurgia
e está bem”, etc.. Até que, finalmente, o velho recebeu a notícia que demorou
um século: a operação fora realizada com sucesso e a paciente estava na fase de
recuperação na UTI pós-cirúrgica. E mais, que os médicos, ao encerrar o
trabalho, iriam à sala falar conosco. Os parentes comemoraram, emocionados. Em
seguida, passaram a planejar como fariam para ver a paciente na UTI,
normalmente vedada a visitação.
Demorou um pouco, mas os médicos foram dar a boa
nova aos parentes e amigos, da forma mais animadora possível. Apareceram, separadamente;
primeiro a anestesista, depois a clínica e o cirurgião, o qual descreveu
brevemente o que foi feito, dando ênfase à limpeza da infecção. Informaram
também que a paciente permaneceria na UTI até o dia seguinte; depois, seria
levada ao quarto.
Passado algum tempo, recorrendo a uma médica
amiga, o velho e os filhos, em duplas separadas, conseguiram visitar a paciente,
que ainda estava um pouco sedada mas, realmente, estava bem.
Naquele dia, nada mais havia para o velho fazer no
hospital, pois sua esposa estava sob controle; voltaria no dia seguinte, o mais
cedo possível. Foi para casa em companhia da cunhada, escalada para cuidar
dele.
Chegou em casa, trocou de roupa, pôs-se à vontade
e preparou uma generosa dose de uísque com gelo e água mineral com gás.
Saboreou-a lentamente.
“Graças a Deus foi tudo bem!” pensou em voz alta.
Ele sabia que vinha, a seguir, um tratamento muito pesado para sua esposa, à
base de antibióticos fortes, aplicados na veia mediante um cateter. Mas a
operação fora um sucesso e ela sobreviveu.
Para o velho, foi um dia inesquecível.
Washington
Luiz Bastos Conceição