Tenho a honra de ser vizinho de bairro
do Sr. João Ubaldo Ribeiro. Sim, falo do imortal e o bairro é o Leblon, no Rio.
Cumprimentamo-nos quando nos vemos na Dias Ferreira, rua simpática em cujos
bares e restaurantes se encontram as pessoas do bairro, cariocas em geral
(nativos ou adotivos) e turistas.
As crônicas do Ubaldo são, para mim, a
maior atração dos jornais de domingo. Elas me agradam muito. Sempre me
interessam e mostram sua competência como escritor; em especial, sua forma de
encaminhar os assuntos. Divirto-me com os personagens de Itaparica, através dos
quais ele discute assuntos sérios com a ironia que lhe é habitual, bem como com
os diálogos no boteco do Leblon que tratam de assuntos atuais de nossa
sociedade. Impressiona-me sua ironia fina, que beira ao sarcasmo quando comenta
os malfeitos dos políticos e governos em geral. Contudo, mantém clara sua
posição de cidadão que se preocupa com o que ocorre no Brasil.
Outra razão forte de eu gostar de ler
suas crônicas é que, coincidentemente, os fatos que ele crítica também me
desagradam. Sua maneira de ver as coisas é muito semelhante à minha e –
acredito – a de muitas pessoas deste País. Ou seja, sinto-me brilhantemente
representado nessas críticas.
Vou exemplificar.
Quando foi anunciada a reforma ortográfica,
fiquei revoltado, indignado mesmo, com as alterações adotadas, algumas
totalmente desnecessárias e outras prejudiciais, tanto a quem já escrevia
corretamente quanto àqueles que estão aprendendo. Por exemplo, a abolição do
trema, o qual informava ao leitor que a pronúncia das palavras é “lingüiça” e
não “linguiça”, “freqüência” e não “frequência”, e assim por diante. As regras
de hifenização das palavras, então, se tornaram uma grande complicação, de tal
forma que o corretor ortográfico de meu processador de textos ainda não lida
com elas muito bem.
Lembro-me de que, num sábado, comentei com
minha esposa: “Essa reforma ortográfica me parece muito estranha e
extemporânea, de modo que só posso concluir que foi feita para beneficiar
alguns diretamente interessados em reedições ou reimpressões de livros,
especialmente livros escolares.” No dia seguinte, domingo, Ubaldo se ocupou do
assunto e mostrou que chegou a conclusão semelhante, escrevendo da forma
brilhante que lhe é peculiar.
Outra lei estranha que me surpreendeu
foi aquela que alterou a normatização das tomadas elétricas para um formato
exclusivamente brasileiro, fazendo com que, daqui para frente, toda a população
tenha de alterar as tomadas em suas casas, pagando de próprio bolso (no caso
desta lei, pareceu-me também que o objetivo último seria beneficiar alguns à
custa de toda a população). Novamente, o Ubaldo se manifestou, com opinião
parecida com a minha.
Mais um exemplo: há já algum tempo, ao
assistir a futebol pela televisão, irrito-me com os narradores que, durante a
transmissão, falam um milhão de coisas que poderiam deixar para os programas de
comentários, principalmente estatísticas estapafúrdias, que servem apenas para
tirar a atenção do jogo propriamente dito. Adotei a providência de tirar o som
do aparelho. Senti-me amparado quando o Ubaldo escreveu “Cobertura
Moderna”,crônica em que criticou exatamente essa nova forma de narrar as
partidas.
Em janeiro, Ubaldo costuma tirar férias
e, habitualmente (parece-me) vai visitar Itaparica, sua terra. Descobri que 23
de janeiro é a data de seu aniversário e (parece-me, de novo) que ele sempre
comemora por lá. Nesse mês, sinto falta de suas crônicas, mas, em compensação,
sei que ele volta com novo estoque das ótimas histórias da ilha.
Sou também leitor de seus romances, que
aprecio e não ouso analisar, mas minha convivência com ele é através de suas
crônicas.
Minha mãe, falecida em 2007, aos 97
anos, também lia as crônicas do Ubaldo – e era sua fã. Em seus últimos anos,
ela viveu em Franca, Estado de São Paulo. Quando a visitava, conversávamos
muito, sobre vários assuntos, e ela comentava entusiasmada as crônicas mais
recentes.
Esse entusiasmo de minha mãe me levou a
abordá-lo uma manhã, no Leblon, na Rua Dias Ferreira. Não posso precisar o ano,
talvez 1998. Eu estava trabalhando no centro do Rio e usava o ônibus
“frescão”,cujo ponto final é naquela rua. Encontrei o Ubaldo, de bermudas e
sandálias havaianas, provavelmente na hora em que ele ia buscar o jornal; eu o
conhecia apenas por fotos e pela televisão, mas arrisquei e falei com ele.
O diálogo
foi mais ou menos assim:
Cumprimentei:
— Bom dia,
Ubaldo.
Ele me
olhou, estranhando um pouco, pois não conhecia aquele indivíduo idoso, calvo e
um tanto obeso, de óculos e bigode.
— Bom dia.
— Por favor,
você poderia me dar um autógrafo? É para minha mãe, que lê sempre suas crônicas
e as aprecia muito.
Ele me
olhou, mostrando-se muito desconfiado, como se estivesse pensando: “Esse coroa
está de gozação comigo. Pela idade que ele aparenta, é difícil acreditar que
sua mãe ainda esteja viva!”.
Mas
concordou e me deu o autógrafo; agradeci e despedimo-nos.
Minha mãe ficou muito feliz com o
presente e eu não esqueci sua gentileza.
Quando, finalmente, encerrei minhas
atividades de consultoria e me aposentei de vez, decidi retomar seriamente um
projeto antigo de escrever um livro que vinha se formando em minha cabeça já
fazia muito tempo, um livro de histórias que aconteceram ao longo de minha vida
e que eu tinha vontade de contar aos amigos. Viria a ser meu primeiro livro,
escrito aos 76 anos.
Em maio de 2009, fiz o lançamento
do “Histórias do Terceiro Tempo” no Rio de Janeiro, para o qual convidei os
amigos daqui. Em setembro do mesmo ano, fiz um lançamento semelhante em São
Paulo, para o qual convidei parentes e amigos de lá.
O êxito da publicação do livro,
considerando meus objetivos, me deu muita satisfação.
Em outubro de 2010, portanto mais de um
ano após o lançamento do “Histórias do Terceiro Tempo”, ocorreu-me enviar ao
Ubaldo um exemplar do livro. Como presente, pois eu sabia que dificilmente seus
compromissos de trabalho e de outras leituras lhe dariam tempo para lê-lo.
Encaminhado com uma carta, o livro serviria para me apresentar como leitor
assíduo e grande apreciador de seus escritos, além de lhe contar que,
realmente, o autógrafo que lhe pedi era para minha mãe e lhe agradecer mais uma
vez por sua gentileza.
Eu já havia lido seu livro de
crônicas,“O Conselheiro Come”, no qual, entre vários assuntos da vida de
escritor, ele fala dos “invadenti”, pessoas insistentes que tentam invadir a
privacidade do escritor, e daqueles que lhe mandam textos para análise e revisão,
esperando um serviço gratuito. Tive, portanto, o cuidado de preparar e juntar
ao livro uma carta explicando a intenção do presente. Nesta, depois de me
apresentar e lembrar o nosso encontro na Dias Ferreira, anos antes, expliquei: “A forma que encontrei de lhe retribuir a
atenção com minha mãe e o prazer que nos traz a leitura de suas crônicas e
livros foi presenteá-lo com algo que, com esforço, consegui fazer: um livro,
meu primeiro, que estou anexando, intitulado ‘Histórias do Terceiro Tempo’ ”. Mais
adiante, declaro: “Agora, parece-me que
uma declaração se faz necessária: não tive, com esta iniciativa, a mínima
intenção de recorrer a você para possível divulgação do livro. Este foi feito
em pequena tiragem, banquei sua publicação como editor independente e não
tenho, com ele, objetivo financeiro algum – foi um livro escrito para meu
prazer e dirigido aos amigos.”.
Ainda pensando nos “invadenti”, decidi
não pesquisar seu endereço para lhe enviar o livro. Passei pelo bar e
restaurante que ele frequenta e deixei com o gerente um envelope endereçado a
João Ubaldo Ribeiro, contendo a carta e o livro.
Depois de uma semana, mais ou menos,
passei pelo bar. No lugar do gerente estava uma moça; falei-lhe da
correspondência que eu havia deixado para o Ubaldo. Ela procurou o envelope,
não o encontrou, e confirmou que o Ubaldo havia estado lá no fim de semana.
Concluiu que a entrega havia sido feita.
Passaram-se semanas, meses, e não tive
confirmação por parte do Ubaldo, ou de alguém por ele, do recebimento da correspondência.
Estranhei e cheguei a comentar o caso com meu amigo Gentil, mais experiente em
lidar com livros e editoras. Ele disse que provavelmente meu presente tinha
sido mal interpretado e contou que conhecia uma moça cujo trabalho é divulgar
textos e que eu não poderia imaginar a intensidade e criatividade utilizadas
nesse trabalho. Mencionei a declaração que fiz na carta sobre o fato do livro
já estar publicado (em baixa tiragem) e lançado para conhecimento dos amigos,
de modo que eu não estava pedindo qualquer ação por parte dele quanto à análise
de texto ou divulgação. O Gentil considerou que, assim mesmo, eu poderia ter
sido mal interpretado.
Depois de algum tempo, dei o assunto
por encerrado.
Em fevereiro
do ano passado, um ano atrás portanto, eu já estava lidando com meu blog,
recém-implantado, quando recebi um e-mail que se constituiu numa surpresa
excepcionalmente agradável. O assunto era “Livro extraviado” e o remetente era
João Ubaldo Ribeiro! Ele me contava que, no dia anterior, no bar, a caixa o
procurou com um livro e uma carta, que, fazendo uma arrumação, acabara de
achar. E que era meu livro “Histórias do Terceiro Tempo”, “acompanhado de uma
carta sua, muito simpática e bem escrita”. Agradeceu o presente, comentou
gentilmente minha forma de escrever e disse que esperava que eu continuasse a
honrá-lo em ser seu leitor.
O e-mail fez
meu dia, divulguei-o para a família e respondi agradecendo suas palavras. Ainda
trocamos e-mails sobre o que me contou um de meus filhos sobre a inclusão de
Ubaldo em seu estudo sobre escritores latino-americanos na Universidade de
Stanford, na Califórnia.
Desde então,
o que aconteceu foi apresentar-me pessoalmente a ele e passarmos a nos
cumprimentar na Dias Ferreira.
Contudo,
todo este tempo, tive vontade de escrever no blog sobre minha apreciação das
crônicas do Ubaldo e sobre a história do autógrafo e do livro extraviado.
Decidi publicá-la hoje.
Na condição
de escritor independente (como lembro sempre, independente aqui significa
“aquele que paga para escrever”), eu tentava imaginar como um escritor
profissional, famoso, detentor de prêmios, vê uma pessoa, um amador, que tem a
pretensão de escrever. No caso do Ubaldo, fiquei com a impressão de que ele é
paciente, condescendente, está seguro de que os amadores não afetam sua vida.
Acabei
achando no futebol uma comparação razoável para meu caso. Pratiquei o esporte,
como um amador aceitável pelos companheiros, na várzea, na universidade e nas
peladas de veteranos; dependurei as chuteiras aos 50 anos. Desde muito jovem,
assisti a partidas memoráveis de que participaram craques do maior calibre,
inclusive o atleta do século XX, os quais certamente não se sentiam incomodados
com os futebolistas amadores.
Daí minha
conclusão: como escritor, sou um peladeiro feliz; como leitor, aprecio o
trabalho dos craques.
E o Ubaldo,
meu vizinho, é craque.
Washington
Luiz Bastos Conceição