Prezada leitora ou caro leitor:
Quando encaminhei a minha
prima Isa os comentários elogiosos que recebi sobre sua crônica “O Sabor da
Erva Mate”, soube que ela escrevera, anos atrás, uma outra; esta, sobre minha mãe,
irmã do pai dela. Foi escrita quando D. Jurema estava ainda viva, tinha 90 anos, e era a
única sobrevivente dentre seus irmãos. Pedi à Isa para me enviar a crônica, que
estou publicando hoje, tanto por sua qualidade, quanto por ser uma prova
marcante de que temos escritores em potencial que poderiam nos estar
proporcionando leitura agradável através de seus livros. Vamos lembrar de
que um dos objetivos deste blog é interessar amigos na atividade de escrever.
Tenho, portanto, mais uma
vez, a satisfação de contar com a participação de Isa de Oliveira Siefert como
cronista convidada de meu blog, resumindo uma história que, desenvolvida,
poderia se tornar a biografia de uma mulher que teve uma vida longa e muito
rica e, na maturidade, foi avançada para o seu tempo.
Washington Luiz Bastos
Conceição
Tema de Jurema
Eram os primeiros dias de outono, quando o céu tem aquele
azul límpido e profundo, recém lavado pelas últimas chuvas do final de verão.
Foi num dia assim, com as árvores ainda cobertas com sua capa verde, que nasceu
JUREMA, a segunda filha mulher do casamento de José Antonio de Oliveira e
Prudenciana Barbosa de Oliveira – a “Nhá Ciana” – que se casara aos 15 anos,
faceira e bonita, com um viúvo de 49. Nasceu JUREMA na fazenda de seus pais,
terra coberta de pinheiros e erva mate, as duas riquezas que nos primeiros 30
anos do século 20 moviam a economia do Paraná. Insinuante, sereno e cristalino,
o rio Imbituvinha, que dava o nome ao lugar, passava por ali cortando e
vivificando as terras, enfeitando a paisagem com suas águas mansas.
Do mundo de sua infância – diferente, tão diferente, do
mundo de hoje – faziam parte o verde a perder de vista no horizonte, o canto
dos pássaros na floresta próxima, o aroma da erva mate secando nos barbaquás, o
arrulho do rio, o apito e fagulhas da maria fumaça, os sinos da capela
consagrada a São Sebastião, as borboletas de dia, os vagalumes à noite, o vento
forte que passava uivando e deixava medo no ar. E outro barulho ainda: o canto
agudo da serraria que punha abaixo o pinheiral e trocava o milagre da
fotossíntese pela magia do dinheiro vivo... Desde sempre, a paixão pelo lucro
derrotou a ecologia.
A família? A família era assim: a mãe ainda jovem, o pai
idoso, uma meia-irmã do primeiro casamento do pai que, solteira, permaneceu
morando na casa paterna; a irmã primogênita do casal – 16 anos de diferença
entre elas – e nesse intervalo uma sucessão de garotos que se apresentavam a
cada dois anos. Era a família do “jota” – todos os nomes começavam com essa
letra: Joséa, Jurandyr, João, Jahyr, Juruá, JUREMA, Juno e a última, que fugiu
à regra e recebeu o nome de Ilka. Estes, os que sobreviveram: outros dois
garotos tiveram curta passagem pela vida e se despediram depois de poucos meses
de convivência.
Uma lembrança gratificante da meninice foi seu aniversário
de cinco anos: centro das atenções, ganhou bolo de vela e vestido novo, feito
por Joséa, que se casara e levara a irmãzinha para viver com ela. Foi assim que,
embora seus pais continuassem em Imbituvinha, ela foi morar em Curitiba, mais
tarde em Ponta Grossa. Ah! Imbituvinha também enfrentou uma mudança: foi
elevada a vila e passou a se chamar Fernandes Pinheiro.
Dos seus sonhos de mocinha não vou falar, não os conheço.
Não sei se teve outros namorados, algum amor frustrado, uma paixão impossível.
Casou-se aos 19 anos com Osmar Bastos Conceição, um jovem professor,
inteligente, impetuoso, político militante de oposição... A soma dessas
qualidades, desses valores e tendências produziu um resultado explosivo: era
diretor de escola pública e desagradava ao patrão... Afinal o patrão era o
governo e “se hay gobierno soy contra”... Assim teve que deixar seu cargo e,
antevendo perseguições mais efetivas, deixou também o Paraná com a família –
mulher e dois filhos a essa altura – e mudou-se para Mirassol, cidadezinha poeirenta
no interior de São Paulo. Lá, como diretor da Escola Normal, consolidou uma
posição de destaque como intelectual formador de opinião. A família adaptou-se
bem à comunidade, conquistou amizades duradouras e deixou saudades quando
partiu. É, não ficaram longos anos em Mirassol. Não sei dizer se foi assim uma
idéia de estalo, tipo Padre Vieira, ou se foi dessas coisas que começam de
mansinho, quase imperceptíveis, e que vão ganhando fôlego a cada vez que se
pensa nelas.
JUREMA sempre reconheceu as qualidades evidentes do marido e
teve o discernimento de valorizar as potencialidades, e começou a imaginar o
que um curso superior e um “banho de civilização” fariam por aquela
personalidade. Doutora em “fazer amigos e influenciar pessoas” conseguiu a
adesão do marido e juntos, pesando prós e contras decidiram deixar a
cidadezinha amiga mas que limitava e sufocava as oportunidades. Destino: São
Paulo, capital. Trabalhar, estudar e sustentar a família, dentro de um
orçamento limitado era uma tarefa assustadora, mas que foi vencida. Durante os
primeiros anos viveram numa pensão à moda antiga, dessas que já não se vê mais:
não havia luxo, mas conforto, não havia requinte, mas distinção, e era familiar
na mais exata acepção do termo. Ali nasceu Maria da Penha, a terceira filha do
casal, a que parecia que encerraria a prole.
Depois da pensão, mais liberados na parte econômica, passaram
a viver em casa alugada. Osmar havia se formado pela Faculdade de Direito do
Largo de São Francisco, mesma turma de Jânio Quadros, e, como professor e
advogado, começava uma carreira bem sucedida. Não perdeu a verve de
oposicionista: o governo em geral e Getúlio Vargas em particular, foram alvos
de críticas ferrenhas. Escreveu muito, publicou alguns livros e principalmente
foi influência positiva na formação de seus alunos.
O quarto filho, Luiz Antônio, chegou e, ai sim, a família
ficou completa.
Depois do final da Segunda Guerra, que se travava lá longe mas
que se sentia aqui dentro, a vida foi se tornando, gradativamente, mais fácil:
foi possível comprar apartamento, pensar em viagens mais dispendiosas, se
cercar de mais conforto.
JUREMA sempre soube o que quis: queria todas as coisas boas
que a vida lhe poderia oferecer. Conseguiu-as, mas não se deixou deslumbrar por
elas. Temperou essa ambição salutar com um coração compreensivo e compassivo.
Pôs sempre mais alto os valores essenciais da vida. Deu aos filhos um Norte
muito definido, mas teve o bom senso de deixar que cada um escolhesse o caminho
p’rá chegar lá. Personalidades diferentes, Túlio, Washington, Penha e Luis
Antonio assimilaram a lição proveitosa dos pais e souberam construir famílias e
carreiras de sucesso.
E quando a vida parecia correr mansa e sem tropeços, a saúde
de Osmar começa a falhar. JUREMA, a que gostava de viagens, de teatro e de
festas, se recolhe e se dedica ao marido de forma exemplar.
Quando ele morre, tem a sensação que também sua vida acabou.
Entra em depressão: ela olha para o abismo e o abismo olha para ela. Ela vê o
abismo e o abismo vê o vazio dentro dela.
Por algum tempo nem o amor dos filhos, nem a solicitude dos
amigos conseguiram preencher essa lacuna.
Mas de repente Deus, a vida e o tempo combinados foram
trazendo outra vez as cores para o seu mundo. Recuperou-se e escolheu ir de
mãos dadas e de bem com a vida.
Depois disso retomou o gosto pelas viagens: vai à Europa com
certa regularidade, em visita à neta Cristina que mora em Paris. Tem em mente
nova viagem aos EE.UU., p’ra conhecer André, o bisneto mais novo, nascido na
Califórnia.
Não perde de vista o que se passa na família, na cidade, no
país e no mundo. Discute com propriedade seus pontos de vista, seu jeito de
pensar e o Washington, que é bom de papo e de “briga” lhe proporciona o clima
ideal da polêmica.
Reciclou seus conhecimentos de escola ano após ano, com as
leituras variadas, com as viagens dentro e fora do país, com a compreensão da
vida, dos seres humanos, em especial dos jovens, em particular dos netos. Aceitou a revolução dos costumes como
conseqüência natural do progresso.
É a sobrevivente do seu clã: o pai, perdeu ainda menina, pode-se
dizer que mãe, perdeu duas vezes: quando morreu a verdadeira e quando morreu
Joséa, a irmã mais velha que a criou a partir dos quatro anos. Todos os irmãos
já se foram e muitos cunhados e cunhadas também. Sofreu com essa condição de
ser a derradeira, mas nunca deixou de sonhar, e essa deve ser a receita do seu
poderoso alto astral.
Vive hoje com Penha e Roberto que lhe dão o apoio emocional de que precisa para se sentir “inteira”. Mas não desistiu de comandar o leme de sua vida e a impressão que tenho é de que até os ventos respeitam aquela que sobreviveu a tantas tempestades.
Vive hoje com Penha e Roberto que lhe dão o apoio emocional de que precisa para se sentir “inteira”. Mas não desistiu de comandar o leme de sua vida e a impressão que tenho é de que até os ventos respeitam aquela que sobreviveu a tantas tempestades.
Esta história que conto, parte dela me foi narrada, outra parte,
sentida e observada, alguma coisa imaginada. Por isso haverá imprecisões,
prováveis erros de avaliação, pretensão minha de ter entendido.
Um dia, para corrigir e acrescentar talvez eu volte a me
debruçar sobre o assunto e faça variações sobre o mesmo tema.
Porque, como disse Heráclito: “VOCE PODE OLHAR DIVERSAS
VEZES O MESMO RIO, NUNCA É A MESMA ÁGUA QUE VOCÊ VÊ”.
Isa de Oliveira Siefert
WASHINGTON É MUITO BOM RELEMBRAR OS VELHOS TEMPOS, PRINCIPALMENTE O TEMPO QUE ÉRAMOS CRIANÇÃS E OS FAMILIARES POR PERTO.
ResponderExcluirREALMENTE A FRASE O RIO QUE VOCE VÊ
É O MESMOO MAS A ÁGUA É DIFERENTE É PRÁ LÁ DE CERTA.
ABS
EDY
A Isa escreve realmente muito bem. Uma grande conquista para este blog e seus leitores eventuais. Embora não tenha conhecido pessoalmente dona Jurema e Dr. Osmar conheço algumas de suas histórias, através de vários livros escritos pelo próprio e pelo filho. Sugiro ao WL que passe pelo menos uma delas para o "Museu da Pessoa" http://www.museudapessoa.net/
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