Quarenta anos atrás, na manhã do dia 11 de julho de 1973, eu estava
trabalhando normalmente no escritório da matriz da IBM, no Rio, quando,
agitados, colegas passaram a ouvir pelo rádio o noticiário de um acidente com
um avião da Varig no aeroporto de Orly, em Paris. Uma vez confirmada a notícia
do acidente, me perguntaram se aquele era o voo que um colega nosso ia fazer para
uma viagem de férias para a Europa. Congelei, pois eu sabia de detalhes da viagem
e era quase certo que ele estava naquele avião. Depois de algum tempo de
ansiedade, a triste confirmação: nosso colega Wilson Tiellet, sua esposa e os
dois filhos, menores ainda, estavam
entre os 123 mortos do desastre. A consternação das pessoas que os conheciam foi
enorme, tanto na IBM, onde o amigo Tiellet era meu colega, quanto no nosso edifício,
onde éramos vizinhos.
Conheci o Tiellet logo que entrei na IBM, em 1959. Eu estava em
treinamento de marketing e suporte técnico para clientes de computadores
eletrônicos, cuja comercialização a Empresa estava iniciando no Brasil. Simpático,
um pouco mais velho do que eu, sotaque indicando que era do sul, ele trabalhava
no Rio, na Matriz. Era o gerente responsável no País pela divisão de relógios –
os “time systems” – e fez, para o nosso grupo de “trainees”, uma palestra sobre
os produtos e serviços de sua divisão. Para ele, era importante que os futuros
representantes da IBM junto aos clientes de computadores conhecessem os
produtos de sua divisão. O “time system” era um conjunto de relógios
interconectados, inclusive relógios de ponto, distribuídos por todas as
instalações do cliente. O controle era feito pelo relógio mestre, que fazia o
sincronismo do conjunto. O sistema todo era elétrico.
Na ocasião, fiquei sabendo que ele tinha sido um ótimo vendedor,
sendo folclórica a história de uma venda que fez de relógios de ponto para
dentistas em Curitiba.
Passei a ter mais contato com o Tiellet em 1970, quando, ao ser
transferido para a Matriz da IBM no
Brasil, me mudei para o Rio. Ele era, então, responsável pela divisão de
suprimentos para computadores eletrônicos. Seus produtos principais eram o
cartão IBM e as fitas magnéticas. Não tínhamos muitos assuntos comuns de
trabalho, mas nos aproximamos porque me tornei seu vizinho ao me mudar para o edifício
do Leblon onde moro até hoje, o CPVA (Condomínio Parque Visconde de
Albuquerque), apelidado “Meia Lua”.
Desde aquele ano, víamo-nos com frequência no prédio, na IBM e no
transporte para o escritório. Ficamos amigos.
Os escritórios da IBM no Rio estavam distribuídos em alguns edifícios no
centro da cidade, na região da confluência das avenidas Presidente Vargas e Rio
Branco. Não trabalhávamos no mesmo edifício, mas usávamos os mesmos ônibus,
fretados, de uma organização chamada “Plano da Melhor Condução”. Eram ônibus
confortáveis, semelhantes aos “frescões” de hoje. Pagávamos uma mensalidade por
sua utilização em itinerário e horário predeterminados e o serviço era
devidamente controlado. Naquele tempo, não era comum um casal ter mais de um
automóvel, de modo que, se a esposa precisasse do veículo para levar crianças à
escola, para compras e outras atividades domésticas, os maridos iam ao centro
de condução, sem se preocupar com estacionamento e aproveitando o tempo para
conversar ou ler no ônibus. Era o meu caso, do Tiellet e de vários outros
colegas, que acabaram justificando economicamente o “Plano da Melhor Condução”.
De manhã, às sete e meia, Tiellet e eu tomávamos juntos o ônibus na
esquina da Timóteo da Costa, nossa rua, com a Avenida Visconde de Albuquerque e
íamos conversando sobre vários assuntos, tanto de trabalho como de atividades
do edifício. Foi assim que acompanhei alguns de seus projetos na IBM e, por
outro lado, que tomei conhecimento do trabalho que ele e alguns vizinhos
tiveram para a conclusão da construção do nosso prédio.
A gerência de suprimentos da IBM no País requeria muita atenção, pois,
evidentemente, os clientes de sistemas de processamento de dados daquele tempo não
podiam prescindir dos principais meios de entrada de dados nos computadores, os
cartões e as fitas magnéticas. A cartolina dos cartões, com características
especiais de pureza para evitar contatos indevidos nas máquinas, era importada
em rolos e cortada em medidas rigorosas no Brasil, produzindo os cartões, que
eram impressos com os clichês de cada cliente. As fitas magnéticas (em grandes rolos)
eram também importadas e, da mesma forma, não podiam faltar. Portanto, além da
venda dos produtos, a operação do setor envolvia importação, produção, custos, e
controle de estoques, que eram preocupações constantes do Tiellet.
Além das atividades usuais, surgiam necessidades especiais que tinham de
ser atendidas. Por exemplo, em uma época em que as leitoras óticas ainda não estavam disponíveis
ou eram muito caras, os cartões “mark sensing”, marcados com lápis especiais,
serviram para correções de provas escolares de múltipla escolha. Em 1970, um
grande projeto da divisão de suprimentos foi a Loteria Esportiva.
Você, caro leitor ou prezada leitora, talvez tenha acompanhado o
lançamento e a implantação da loteria esportiva, a “Loteca”, e se lembre de que
as apostas eram feitas em cartões, colocados em um estojo de plástico e perfurados
mediante um punção.
Num tempo em que já havia a disponibilidade de grandes computadores para
processar a imensa quantidade de apostas no País inteiro, a forma de
introduzi-las no sistema foi o grande desafio, pois não tínhamos ainda os
pequenos terminais especiais, as maquinetas que se conectam hoje aos sistemas
para registrar as apostas da Quina, da
Sena e outras.
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Cartão Port-a-punch IBM
(Fonte: Site IBM History) |
A equipe do projeto planejou o uso de um cartão especial,
previamente serrilhado, que a IBM já oferecia para perfuração manual de dados
em ambientes fora dos centros de processamento de dados – o cartão “Port-a-punch”.
Foi projetado então o cartão da Loteria Esportiva, com apostas em treze
jogos, três palpites por jogo. Foi uma febre no Brasil em ano de Copa do Mundo
(a do México, em que o Brasil se tornou tricampeão mundial). Após rodadas de
teste do funcionamento total do sistema, foi implantada a “Loteca”.
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Cartão da Loteca (Fonte Wikipedia) |
O Tiellet vibrou muito com o sucesso do projeto, que teve repercussão internacional, e, se bem me lembro, ele foi devidamente
premiado pelo excelente resultado do negócio.
O projeto da Loteca foi um dos assuntos de nossas viagens de ônibus.
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Bem, o Tiellet colega eu já conhecia. Quem me surpreendeu muito
agradavelmente foi o Tiellet vizinho. Surpreendeu porque ele usava toda sua
seriedade e competência também na vida particular e no relacionamento com os amigos
do prédio. Senti que estes o tratavam com muita consideração e logo fiquei
sabendo que, além de seu bom relacionamento com todos, ele tinha tido uma
atuação muito destacada na comissão dos condôminos durante a construção do
prédio. Neste trabalho, alguns condôminos criaram entre si uma relação de
amizade, de forma que, quando cheguei ao edifício, tinham estabelecido uma
convivência duradoura, incluindo os familiares.
Eu já morava no edifício quando a quadra de esportes foi concluída. Houve
uma festa de inauguração, iniciada com uma cerimônia religiosa na própria
quadra. Esta estava toda enfeitada com bandeiras, colocaram-se cadeiras para a
audiência e foi montada uma grande mesa, coberta com toalha branca; atrás
desta, uma cruz tosca de madeira. Após o ato religioso, conduzida por um
sacerdote convidado, falaram o síndico, o Tiellet, e mais um ou dois condôminos
convidados. A seguir, houve duas partidas recreativas de futebol de salão, uma
das moças e outra dos garotos, que animaram a festa e que literalmente inauguraram
a quadra esportiva. O Tiellet foi, certamente, um dos organizadores da festa.
Inaugurada a quadra, formamos um grupo para jogar voleibol – criando o
que passou a ser chamado o “vôlei dos coroas”. A escolha da modalidade
esportiva, intencionalmente ou não, foi sábia, pois, não havendo contato físico
entre adversários, evitou que houvesse conflito entre vizinhos. Em compensação,
nem todos tinham experiência naquele esporte. Ao lado de alguns que praticavam ou
haviam praticado o vôlei, outros aparentemente nunca tinham jogado; porém, nem
por isso, foram rejeitados. Eu, por exemplo, havia jogado um pouco na
juventude, no colégio e na ACM (Associação Cristã de Moços), com modesta
atuação como levantador, mas havia alguns menos experientes do que eu. O
Tiellet não mostrava muita habilidade, mas era muito aplicado. De qualquer
forma, os times eram divididos de forma equilibrada, erros eram tolerados e
reclamações estavam fora do contexto. Um detalhe importante: algumas esposas,
experientes em vôlei de praia, também jogavam e não faziam feio.
O vôlei dos coroas era praticado na noite das quartas feiras e na manhã
de sábados e domingos. Eu jogava no fim de semana, mais ou menos das dez horas
à uma da tarde. Quando terminava o vôlei, completávamos a atividade esportiva
com uma cervejinha no bar do próprio prédio e umas rodadas muito animadas de
porrinha. Tudo com muita disciplina para evitar aborrecimento em casa.
Pouco a pouco, os jovens foram aderindo ao nosso vôlei, o que reforçava
os times e melhorava o nível das partidas.
Chegamos a organizar torneios, inicialmente com a competição entre os três
blocos do edifício (blocos A, B e C). O nosso bloco, meu e do Tiellet, era o
Bloco A. No primeiro torneio, quando alguns jogadores praticamente não se
conheciam, perdemos. Alguns meses mais tarde, fizemos novo torneio, também
entre blocos. Dessa vez, o Tiellet resolveu estabelecer uma estratégia para o
time. Lembro-me bem; fizemos, eu e ele, o planejamento no ônibus, a caminho do
escritório, na semana que precedeu o torneio. Ele sempre levava no bolso do
paletó um maço de cartões IBM, para anotações – o que fazia parte de seu
marketing do produto. Ao nos sentarmos no ônibus, ele tirou os cartões e um
lápis e passamos a marcar as posições dos jogadores na quadra, rodada a rodada.
Nos torneios, os times eram de seis jogadores e a regra era ainda a antiga:
para o time fazer um ponto, teria de estar em vantagem, ou seja, teria de ter
sacado antes. Quando conseguia a vantagem, a reversão do saque, o time rodava.
A contagem ia até 15. Normalmente, os times eram montados com três cortadores e
três levantadores. O nosso tinha três bons cortadores e levantadores regulares,
que formavam duplas na rede. Os outros blocos tinham elencos equivalentes.
Nossa estratégia constituiu em posicionar nossos jogadores, em cada rodada,
considerando a cobertura que alguns companheiros necessitavam dos mais hábeis, na
rede e no fundo da quadra. Como substituições tinham de ser feitas, pois a
ideia era de que todos os inscritos participassem do jogo, planejamos de forma
que elas não enfraquecessem o time.
No fim da viagem, o Tiellet tinha no bolso, nos cartões, nosso esquema
do jogo, que depois ele mostrou aos companheiros para discussão e sugestões.
Bem, seguimos o plano. Não foi fácil, mas vencemos aquele torneio.
Na semana anterior à partida para Paris, Tiellet me chamou, muito
animado, para mostrar seu plano de viagem e pedir algumas dicas, pois eu havia
viajado de férias à Europa no ano anterior. Foi a última vez que conversamos.
Essas são algumas lembranças que tenho de meu amigo, as quais guardo com
muito carinho e quis compartilhar com os leitores deste blog, entre os quais estão colegas da IBM e moradores do Meia Lua.
Após sua morte, como homenagem dos condôminos, modesta porém duradoura,
a quadra de esportes ganhou seu nome.
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Washington Luiz Bastos Conceição