Caro leitor ou prezada leitora:
Quem frequenta meu blog já teve oportunidade de ler escritos da Isa, minha prima do Paraná, que receberam comentários elogiosos. Publico, hoje, mais uma de suas ótimas histórias. Muito agradecido a ela e com grande satisfação.
Washington Luiz Bastos
Conceição
Um Conto. . . Uma História
A manhã estava quase perfeita, pensou ele. Depois de uma semana de espera, perscrutando todos os dias aquele céu de chumbo, finalmente havia percebido sinais de melhora do tempo. Havia ainda algumas nuvens escuras, mas era quase certo que logo adiante se desmanchariam, porque a bonança chegaria em breve, desfazendo os últimos sinais da tempestade. Seria uma longa jornada, mas tantas vezes repetida que já quase não causava impacto algum.
Nas primeiras vezes havia sempre uma pontinha de insegurança que fazia com que checasse, minuto a minuto, os instrumentos, a rota, os ventos, o rumo... A fase da ansiedade.
Depois de algumas vezes bem sucedidas, a euforia era sua companheira de viagem. Ele sabia tudo que havia para saber, uma leve e despreocupada checagem já resolvia, porque, senhor da máquina e dos elementos, era senhor também de qualquer situação. A famosa fase do orgulho, do ”eu sou mais eu”.
Agora, finalmente, entrara na terceira e melhor das fases: a da naturalidade, a que fazia com que os gestos fossem espontâneos, as verificações fossem as necessárias e tudo o mais se processasse na mais tranqüila das rotinas.
Tornou a olhar o céu e decidiu que não podia desejar nada melhor. E como toda longa jornada começa com o primeiro passo, deu partida ao seu avião, uma pequenina caixa voadora que deveria levá-lo, vagarosamente, através do oceano, milhas e milhas, desde o sul do hemisfério norte até o sul do hemisfério sul.
Incrível a paz que se desfruta assim, suspenso entre mar e céu, como um veleiro cavalgando nuvens, vendo o tempo se escoar sem pressa.
Mas de repente, tão de repente que o pensamento se perdeu no sobressalto, o motor calou-se.
Um gesto tantas vezes repetido – a troca do tanque de combustível – não teve a resposta esperada. O motor tossiu e pifou de vez. Piloto experiente não perdeu a calma: reverteu ao tanque anterior, que a troca se fizera por questão de equilíbrio, não porque tivesse esgotado. E o motor recusou-se e continuou calado. A urgência tomou conta, então, da cabine apertada e os gestos se fizeram frenéticos na tentativa do sucesso. Mas nada, nada reverteu aquele silêncio. E quando se deu conta, o avião mergulhava nas águas azuis do Caribe: não houve tempo de alijar o combustível, não houve tempo de avisar o Controle de Vôo, não houve tempo para nada mais além de tentar sair vivo do mergulho. E agora, lá estava ele, naquela vastidão azul e fria, sem outro sinal de vida por perto. De bota, calça jeans e jaqueta, mas sem colete salva-vidas, que havia se prendido em alguma coisa por lá e teve que ser deixado de lado.
E agora, meu Deus? Manteve-se boiando e entre pensar na vida e na morte, o tempo foi se escoando.
Lembrou de coisas há muito tempo esquecidas: de como se maravilhava com a mágica da avó, que, com fio e uma agulhinha, tecia cortinas onde voavam anjos e flores.
De como gostava de ouvir Cecília cantar e tocar piano... a doce Cecília, onde andaria agora?
E ouviu a risada do padrinho quando, sentado em seus joelhos, à beira do fogo de chão, lhe perguntou como era possível que gostasse de chimarrão e de cerveja, um tão quente e amargo, a outra tão amarga e fria.
Visitou o passado como quem visita um lugar definido no espaço: o pai, a mãe, Letícia, jardins, casa e acontecimentos foram passando por ele, acordando sentimentos, aquietando saudades. E de repente viu, mas viu mesmo, passar diante de seus olhos assombrados, aquela miríade de borboletas amarelas que um dia, há mais de dez anos, o deixaram maravilhado às margens das Cataratas do Iguaçu. Ficou seguindo aquele vôo impossível no meio do oceano, até que desapareceram no nada, de onde haviam saído.
Estava cansado e castigado pela água e pelo Sol e forçou-se a pensar então que estava apenas tendo um pesadelo: sabia que ia sentir seu ombro sacudido e a voz de Myrian: acorda seu preguiçoso, pensa que o mundo estacionou na curva da esquina? E ouviria seu riso petulante, marca registrada dos dias de bom humor. Ele abriria os olhos devagar e veria a manhã se desenhando nas rendas da janela: ia levantar, beijar Myrian de um modo tão especial que ela estranharia. “Que é isso? Está querendo o que de mim para derramar logo cedo essa ternura toda?” E não perceberia, tão ocupada com suas tarefas reais e imaginárias, que seu marido era um ressuscitado, um homem novo que tinha escapado, acordando, daquele planeta-água, inóspito e frio, sem condição de sobrevivência. Só depois do segundo gole de café, ele diria: esta noite tive um sonho...
Mas não houve o toque no ombro, não houve a voz e nem o riso, não houve a manhã dissolvendo o pesadelo.
E ele percebeu então com uma clareza cristalina que, desse pesadelo, ele escaparia... dormindo... Deixou de lutar e de pensar para se manter acordado e uma letargia abençoada varreu todas as sensações. Deixou-se levar.
Mas um sobressalto atravessou as muitas camadas de névoa que adormeciam o pensamento: um “toc-toc” contínuo, monótono se fez ouvir.
Que é isso? Pensou... Talvez os passos de um anjo, vindo abrir as portas de um paraíso, um paraíso sem serpentes e sem pecado, sem culpas e sem remorsos, um paraíso cordial que acolhe bem qualquer que seja o hóspede, enfim, sem necessidade de adjetivos ou de aditivos, “O PARAÌSO”.
Abriu os olhos devagar, sem se dar conta do que o esperava. A poucos metros dele, havia um pequeno barco pescador.
Fixou os olhos sem esperança, pensando que, como as borboletas, também o barco sumiria numa fresta do tempo. Mas não... Não sumiu, e ele sem saber de onde tirou essa força, levantou a voz e agitou os braços.
Muito vagarosamente, o barco veio chegando, e um anjo coreano de cara curtida de sol lhe estendeu os braços e ele reingressou neste lado de cá do paraíso, onde há serpentes e pecados, onde há culpa sem remorso, mas onde se pode sempre sentir o gosto bom de viver a vida...
Esta é uma história verdadeira, dessas que parecem ficção, mas que aconteceu realmente. O pescador coreano nunca havia pescado nesse local e, sabe-se lá guiado por que mãos, nesse dia tomou esse rumo e salvou uma vida preciosa, como preciosas são as vidas de todo ser humano.
Isa de Oliveira Siefert
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