sábado, 23 de maio de 2020

Óperas – De pai para filho


Caro leitor ou prezada leitora:
Prossigo em meu programa de lhe oferecer mais de meus escritos neste tempo de isolamento social. Desta vez, considerando a gentil recepção dos leitores às crônicas sobre boleros e tangos, trago a história de meu interesse por óperas, transmitido pelo meu pai, grande apreciador da música lírica.
Apresento-lhe a transcrição de mais uma parte do capítulo “A música e eu” de meu primeiro livro, o “Histórias do Terceiro Tempo”, publicado em 2009.
Dedico esta publicação a meu pai, seus contemporâneos que transmitiram aos filhos o gosto por suas músicas preferidas e, especialmente, aos imigrantes italianos e seus descendentes que nos trouxeram o hábito de apreciar o “bel canto”.



Introdução

Nunca estudei música, não tenho bom ouvido e, quando tento cantar, desafino. Enfim, sou um ignorante que, humildemente, gosta de ouvir vários gêneros de música: desde marchinhas de carnaval, sambas, bossa nova, música brasileira em geral, boleros e tangos, até óperas e música clássica. Variado, não é?
Vocês poderão dizer: “Caramba (ou outra interjeição que costumem usar mais), Washington, deve ser tudo o que os seus contemporâneos curtiram ao longo da vida – qual é a novidade?”.



Óperas, meu pai e eu

É pouco provável que a maioria de vocês goste de ópera ou, mesmo, que se interesse pelo assunto. A ópera carrega a fama de ser um espetáculo em que a heroína é uma mulher gorda pela qual o herói e o vilão estão apaixonados e travam duelo de morte; estes tampouco correspondem fisicamente aos personagens jovens e impetuosos do drama. Apesar de realmente acontecer com frequência esse contraste entre a aparência de cada artista e de seu papel, suas vozes e o espetáculo como um todo se sobrepõem a essa característica, que se torna um detalhe de pouca importância. Embora não seja conhecedor de música lírica, apenas alguém que a aprecia, ouve e assiste a óperas de vez em quando, tenho aqui alguma coisa para contar e comentar.

Sempre que vou a Nova York, procuro visitar o Lincoln Center para assistir a algum espetáculo artístico em um daqueles teatros maravilhosos. Quando há uma apresentação de ópera no Metropolitan Opera House, não perco, mesmo que tenha de subir à galeria lá no alto.
Tive o prazer de levar, ao Metropolitan, Leilah e Jurema, minha filha, então com doze anos. Fomos assistir a “Il Trovatore”, uma das minhas óperas prediletas. O teatro, grandioso, moderno, muito bonito; o público, elegante e bem comportado; os cenários, a orquestra, os cantores, perfeitos. As árias mais famosas eu conhecia bem, dos discos, e vibrei em ouvi-las ao vivo, como parte do espetáculo teatral completo. Minha satisfação foi triplicada pelo interesse e a satisfação delas, desde o “Alerta!. Alerta!” ao “Miserere”, com destaque para o brilhante coro dos ferreiros. Inesquecível!

O gosto pelas óperas, assim como pelo tango, também me foi passado por meu pai. Morar em São Paulo ajudou muito, pois, além das temporadas no Teatro Municipal, havia sempre programas de música lírica nas rádios, especialmente na Rádio Gazeta. A preferência dele era por Verdi, de modo que tínhamos em casa discos com várias árias da Traviata, Otelo, Il Trovatore, Un Balo in Maschera, Aída, Rigoletto, além de algumas das mais famosas de outros autores.
O que vocês acham que eu fazia quando tocava os discos em casa, especialmente quando estava sozinho, de bobeira? Acho que adivinharam: tocava as árias, de preferência do barítono, e procurava acompanhá-lo, de libreto na mão. Era uma pauleira para mim e para os vizinhos, mas eu me divertia e aprendia para futuros gastos; meu pai morria de rir. Meu desafio preferido era a ária “Credo in un Dio crudel”, do Otelo, interpretada pelo Iago, o terrível vilão da história, com versos e música muito fortes.
Nessa época (início dos anos 1950, eu tinha uns vinte anos), fui assistir com meu pai ao Otelo, no Teatro Municipal de São Paulo, o qual apresentava anualmente temporadas com récitas de qualidade, com grandes cantores e músicos italianos. Os principais intérpretes de Otelo naquela noite foram, que eu me lembre, Mario del Monaco, tenor, Elizabeta Barbato, soprano, e Enzo Mascherini, barítono, que arrancaram “Bravos” da audiência, italianos e descendentes em sua grande maioria. Ainda assim, parece que o Mascherini cometeu alguma falha, imperceptível para mim, e um dos meus vizinhos de cadeira comentou com o outro: “Você viu que frango deu Mascherini?”.

Depois da fase de estudante, não perdi meu gosto por óperas, mas não ouvi mais música lírica com regularidade e minhas idas ao teatro para assistir a óperas foram poucas, embora marcantes.
Dez anos antes de ver o Trovatore, em Nova York, Leilah e eu tínhamos assistido à Aída, em Roma, nas Termas de Caracala, espetáculo muito bonito, com um cenário grandioso. Porém, visto de longe e ao ar livre, em uma noite um tanto fria do verão italiano, não pude apreciá-lo devidamente. Valeu pelo inusitado.
Mais inusitado ainda foi o caso da ópera a que fomos assistir no Municipal do Rio, por volta de 1980, Leilah e eu, em companhia do Roberto Castro Neves, grande amigo e colega da IBM, e Dóris, sua esposa. Era uma temporada com cantores italianos, que eu me lembre não dos mais famosos, mas estava agradando. A ópera era a Tosca, hoje minha predileta. Tarde quente do Rio, o Municipal cheio, conseguimos um bom lugar e tivemos um bom primeiro ato. Veio o intervalo, aproveitamos para bater um bom papo, mas o tempo foi passando e nada de recomeçar o espetáculo. Depois de uns vinte minutos de atraso, avisaram pelo alto-falante que estava havendo um problema qualquer, mas que logo seríamos chamados para o segundo ato – e tome mais atraso. Finalmente, chamaram os espectadores e acabaram explicando que os cantores italianos se recusaram a continuar com a ópera porque não tinham recebido o pagamento combinado. Os produtores foram buscar às pressas um soprano e um tenor brasileiros (no meu tempo de futebol de várzea, isso se chamava laçar) que deram prosseguimento ao espetáculo. A soprano era boa, conhecida, e não decepcionou, dadas as circunstâncias, mas o tenor teve um desempenho mais fraco. Contaram, porém, com a boa vontade e a simpatia do auditório e, importante, levaram a ópera até o fim.
Mais recentemente, e já faz dez anos – para os mais velhos os anos passam cada vez mais depressa – voltamos ao Metropolitan para assistir à Turandot, de Puccini. Desta vez, somente Leilah e eu. O teatro, magnífico como sempre, orquestra, cenário, intérpretes de primeira linha. Eu não conhecia o enredo e fiquei um tanto decepcionado, pois parece história infantil do folclore chinês. Mas a música é muito bonita, os cantores foram ótimos e o cenário genial. Tive apenas uma dificuldade de aceitação: a soprano, voz magnífica, era do tipo grande e gorda, e sua personagem é a “principezza”!

“E agora?” Vocês poderão perguntar. “Você tem assistido a óperas? Ainda gosta dessa música de antigamente?”
Agora, respondo, nesta vida preguiçosa de idoso, o que faço é ouvir, de meus discos, algumas óperas e árias diversas, inclusive da série dos três tenores, e assistir a DVDs que ganhei do Cássio e do Ron, sogro dele.
Nessas sessões, tenho uma sensação diferente, mescla da apreciação de uma forma de arte diferente, pouco comum em nossa mídia em geral, e das reminiscências que ela evoca.




Suplemento:

Como ilustração da crônica, os leitores poderão ouvir algumas das árias e aberturas que selecionei no Youtube e relaciono abaixo, indicando os respectivos links. Nessa seleção, procurei vídeos de árias e aberturas mais conhecidas que costumávamos ouvir lá em casa e outras que passei a ouvir mais tarde.


1. Tosca - "E lucevan le stelle" – Plácido Domingo https://www.youtube.com/watch?v=5-AF1T4OehM


2. Carmem – La Habanera - Carmen Monarcha
https://www.youtube.com/watch?v=K078WJGmivo

3. La Traviata - Brindisi - Pavarotti
https://www.youtube.com/watch?v=pu7zWrIMV_g

4. Norma – Casta Diva – Maria Callas
https://www.youtube.com/watch?v=TYl8GRJGnBY

5. Otelo - Credo in un dio crudel - Tito Gobbi
https://www.youtube.com/watch?v=1SWYKIN41WQ

6. I Pagliaci – Vesti la giubba – Plácido Domingo
https://www.youtube.com/watch?v=1hxonfpfuTY

7. O Barbeiro de Sevilha – Abertura – Orquestra Sinfônica do Rio Grande do Norte
https://www.youtube.com/watch?v=9W0tZ1F68pA

8. Aida – Marcha Triunfal - Lund International Choral Festival 2010 – Suécia – Regente: Roger Andersson
https://www.youtube.com/watch?v=ns_xsduwI-E

9. La Traviata – Abertura - Istanbul State Opera – Regente: Raoul Grüneis
https://www.youtube.com/watch?v=EVNRxiof298

10. Il Trovatore – Coro di gitani – Stride la vampa - Cristina Vincenzi e o coro "Le voci di bonavicina”
https://www.youtube.com/watch?v=o5nalsW2sMw&list=TLPQMjMwNTIwMjBFQTR7isdg7Q&index=4

11. Turandot - Nessum dorma – Pavarotti (espetáculo em Londres, que ele encerra com a canção “Torna a Surriento”)
https://www.youtube.com/watch?v=S8F-lenWkIo

12. Madame Butterfly – Un bel di vedremo – Renata Tebaldi
https://www.youtube.com/watch?v=1woH96ROG-c

13. O Barbeiro de Sevilha – Largo al factotum – Dmitri Hvorostovsky e Orchestre symphonique de Montreal.
https://www.youtube.com/watch?v=TKDXr_fimQ8

14. Aída – Celeste Aída – Andrea Bocelli
https://www.youtube.com/watch?v=AYfTZjRDaCI

15. Rigoletto – La donna è mobile – Os três tenores (Pavarotti, Plácido Domingo e José Contreras)
https://www.youtube.com/watch?v=a8-vZJNY10k

16. Cavalleria rusticana – Intermezzo – Orquestra Sinfônica Evergreen – Regente: Lim Kek-tjiang
https://www.youtube.com/watch?v=7OvsVSWB4TI

17. William Tell – Abertura – Orquestra Sinfônica de Milwaukee – Regente:  Edo de Waart
https://www.youtube.com/watch?v=YIbYCOiETx0


domingo, 10 de maio de 2020

Mr. Washington – Party of Nine!

Prezada leitora ou caro leitor:
Prossigo em meu programa de lhe oferecer mais de meus escritos neste tempo de isolamento social. Desta vez, trago outra transcrição de um capítulo de meu e-book “A Califórnia e Nós”.
Dedico esta transcrição aos jovens que nos acompanharam, à Leilah e a mim, na extraordinária e inesquecível viagem de comemoração de nossas Bodas de Prata.


Introdução

Sou de um tempo em que as pessoas privilegiadas que viajavam ao exterior, especialmente à Europa, convidavam amigos e parentes para comentar a viagem, acompanhando a narração com longas apresentações de slides. Tais sessões, embora com ilustrações interessantes, às vezes se tornavam cansativas.
Nesse meu livro sobre o nosso relacionamento com a Califórnia, não posso deixar de relatar viagens, pois não moro lá, e insiro algumas fotografias. O texto é longo, porém, comparando com as apresentações de slides, meus leitores, se cansarem, têm a vantagem de poder interromper a leitura e retomá-la (espero) em outra hora.


Bodas de Prata – a excursão com os jovens

Em dezembro de 1984, Leilah e eu completamos 25 anos de casados.
Durante aquele ano, pensamos em como comemorar nossas Bodas de Prata. Leilah não tinha vontade de fazer uma festa, entre outras razões porque dois dos filhos estavam morando nos Estados Unidos e suas férias de fim de ano se resumiam a uma semana. Tivemos, então, a ideia de fazermos uma reunião da família lá na Califórnia, levando daqui conosco os outros dois filhos, Luiz e Jurema. Desta forma, proporcionaríamos a estes uma bela viagem de férias.
Em junho, a decisão estava tomada e começamos a trabalhar no projeto. Tanto que, tendo deixado a IBM em outubro de 1983, ao me empregar em outra empresa, em 1984, combinei que tiraria férias antecipadas em dezembro. Leilah também programou férias para dezembro, junto à empresa em que trabalhava.
Aconteceu, entretanto, que os amigos dos meninos ficaram sabendo da viagem e se animaram a nos acompanhar – eram todos jovens, porém maiores de idade.
O Cássio havia deixado a “fraternity” onde morava, dentro do campus de Stanford, mudando-se para uma casa em Palo Alto com três colegas. Ele nos comunicou que teria espaço para nos hospedar quando estivéssemos naquela cidade, pois seus companheiros de moradia estariam passando as festas de fim de ano fora, com as respectivas famílias.
Dessa forma, nós, os viajantes, teríamos despesas de hotel apenas nas outras cidades, onde ficaríamos menos tempo, além das despesas com refeições. Considerando a vontade dos jovens, que iriam animar a viagem, e o que teríamos gastado com uma festa aqui no Brasil, Leilah e eu decidimos bancar as despesas de hotel e refeições dos que fossem conosco; eles teriam apenas de comprar as respectivas passagens.
Na semana de 17 de dezembro, viajamos do Rio para Los Angeles: Leilah, eu, Luiz, Jurema e Paolinha, namorada do Luiz. Em Los Angeles, alugamos um vasto “station wagon” (o utilitário daquele tempo, chamado então caminhonete no Rio e perua em São Paulo) com capacidade para oito pessoas, e fomos buscar o Francisco na Occidental. Passamos a noite em Glendale (próxima à Universidade) e, no dia seguinte, rumamos para Palo Alto.
Aproveitando para fazer turismo, fomos pela rodovia 1, que acompanha a costa e oferece vistas maravilhosas, como as praias de Santa Bárbara e a costa escarpada da região do “Big Sur”.

Nosso primeiro destino, antes de Palo Alto, era Carmel, onde o Cássio estava nos esperando para jantar.
Chegamos a Carmel cerca de oito horas, noite fechada. Tivemos a agradável surpresa de sermos recebidos pela família do Albert Jordan, amigo do Cássio, colega de escola e de futebol e um dos quatro moradores da casa em Palo Alto, onde iríamos ficar. Sua família era do Irã e eles tinham um restaurante em Carmel, cidade em que moravam. Como o restaurante estava fechado para as férias de Natal dos empregados, a própria família preparou e nos serviu um típico jantar da terra deles, com destaque para a carne de carneiro. Foram extremamente gentis ao receber-nos, então um grupo de sete pessoas, contando o Cássio. Foi um ótimo começo de viagem.


Abro um parêntese:
Muitos anos depois, fomos surpreendidos aqui no Rio com um telefonema de um senhor: era o pai do Albert. O casal estava fazendo um cruzeiro em um transatlântico e veio ao Brasil. Entendemo-nos em Inglês, apesar dos sotaques diferentes, e combinei de buscá-los no hotel para jantarmos. Perguntei que tipo de comida eles preferiam provar aquela noite. Custei um pouco a entender, mas era... galeto! E ele acrescentou: “aqui no Brasil estou comendo só galeto, pois vocês o preparam da mesma forma que fazíamos no Irã; estamos matando a saudade”.
Fomos buscá-los e não tivemos dificuldade em reconhecê-los apesar de fazer muito tempo que não nos víamos. Expliquei que o restaurante onde comíamos galeto, no Leblon, era relativamente simples, mas era da especialidade e nos atendia muito bem. Foi um jantar agradável, onde rememoramos nosso encontro anterior e falamos dos filhos, muito amigos até hoje. Tive de me esforçar para pagar a conta, mas ele fez questão de dar a gorjeta. Lembro-me da expressão de espanto do garçom – pareceu-me que a gorjeta foi maior do que a conta.
Comentei, depois, com a Leilah: pois é, levamos ao Gatão (apelido do “Galeto do Leblon”) o homem que foi dono do maior restaurante de Teerã!


Após o jantar, rumamos para Palo Alto, mais umas duas horas e meia de viagem. Chegamos todos bem.
A casa era espaçosa, deu para nos instalarmos razoavelmente bem. Fomos dormir e, no dia seguinte, tivemos um alegre café da manhã, pois a turma já estava muito animada. Alguns foram ao supermercado de manhã e fizeram o reconhecimento do bairro, da vizinhança.
Era 20 ou 21 de dezembro e passamos a programar as atividades para os próximos dias. Cássio já havia planejado passarmos o aniversário de casamento (dias 29 e 30) em Lake Tahoe, época em que a região do lago está coberta de neve. A expectativa de terem a oportunidade de esquiar animou os jovens. A esta altura éramos Leilah, eu e cinco jovens.
Dois mais se juntariam ao grupo nos dias seguintes: meu sobrinho Marcelo, filho de minha irmã, e o Archie, colega de escola do Francisco desde o jardim de infância. Este também estava estudando nos Estados Unidos, em outra universidade. Ambos chegariam a São Francisco.
Cássio e Julia estavam iniciando o namoro (que, anos mais tarde, resultaria em casamento); ela havia chegado de um passeio à Europa e ele foi encontrá-la para combinarem os programas. Do encontro, Cássio trouxe a notícia do convite dos pais da Julia para um jantar na casa deles – para todo o grupo! Já seriamos dois coroas e sete jovens, que se somariam aos cinco da família dela.
A família da Julia morava em Los Gatos, cidade a oeste de São José e a uma meia hora, de automóvel, de Palo Alto. Fomos em dois grupos, pois alguns dos jovens tinham ido a São Francisco à tarde e voltariam diretamente para Los Gatos. Cássio foi conosco, de modo que não tivemos o difícil trabalho de procurar, à noite, o bairro e a casa.
Quem conta bem a história desse jantar é a Leilah. Escrevi e pedi a revisão dela.


Ao sermos convidados para jantar, fomos procurar um presente para dar ao casal. Tinha de ser algo de valor, ainda mais que tinham convidado todo o grupo. Leilah tinha perguntado ao Cássio como eram os pais da Julia, mas ele não nos deu um perfil claro; não tivemos, portanto, uma dica sobre o que comprar. Fomos ao Shopping Center de Stanford e na Emporium, loja de categoria, escolhemos uma bandeja de desenho chinês, que achamos bonita.
Quando chegamos à casa dos Martino, nos surpreendemos. Construída em um loteamento de alto nível, era uma casa moderna com projeto arquitetônico que aproveitava o desnível do terreno. Pareceu-nos uma mansão moderna, muito especial. Já na porta de entrada, notamos o capricho na seleção e conservação das plantas.
Fomos recebidos pelo Ron, pai da Julia, que nos guiou por um corredor, também decorado com plantas ornamentais, até uma sala de visitas onde encontramos a Julia e a Diane, sua mãe. Ron e Diane, alguns anos mais moços do que nós, e a filha, foram muito simpáticos e nos puseram à vontade. Nosso Inglês serviu para uma boa comunicação e melhorou muito depois que nos serviram um aperitivo, inesquecível para mim: champanhe com “seven-up”.
A sala de visitas e, em seguida, a enorme copa-cozinha, davam para a piscina, que não tínhamos visto da entrada da casa. Do outro lado do corredor ficava a sala de jantar, com uma grande mesa de tampo de cristal, de formato oitavado. Os quartos ficavam no outro lado da casa, oposto à piscina, em nível diferente. Na copa-cozinha havia, além dos balcões e armários junto às paredes, uma ilha com fogão, balcão e gaveteiros; completando o mobiliário, uma mesa grande, para oito pessoas pelo menos.
Para nós, Leilah e eu, uma grande surpresa foi o lavabo, decorado com vegetação do oriente (bambu, entre outras) e, além da iluminação normal para a noite, a zenital durante o dia.
Ficamos então sabendo que o Ron era Arquiteto, especializado em decoração de interiores, e que tinha uma loja sofisticada do ramo em Los Gatos.

A casa dos Martino em Los Gatos
Na sala de jantar jantaram os jovens – os dois irmãos da Julia, Jon e Randy; Luiz, Paolinha, Francisco, Jurema, Marcelo e Archie. Na copa, Ron, Diane, Julia, Cássio, Leilah e eu.
O Cássio não havia contado para nós que a família era religiosa, católica. Foi para mim uma surpresa, portanto, ser convidado a dizer a “grace”, ou seja, fazer a oração antes da refeição. Topei, mandei bala, estimulado pelos drinks, mas acho que dei um recado satisfatório e agradeci devidamente a gentileza do casal.
O jantar foi memorável, um ótimo início de relacionamento – e ficamos muito amigos da Diane e do Ron.


Leilah, até hoje, sente um certo constrangimento pela modéstia, impropriedade mesmo, de nosso presente (a bandeja) frente ao requinte da decoração da casa, tanto que, há algum tempo, comentou nossa “gafe” com o próprio Ron. Ele sorriu, divertido com a preocupação dela.


Passamos a noite de Natal na casa de Palo Alto. Após telefonemas vários para o Brasil e os votos recíprocos de Feliz Natal (não me lembro da sessão de presentes, nem da árvore, nem das orações) comemoramos com uma ótima e animada ceia. Tampouco me lembro do cardápio, mas sim (ajudado por fotografias) de que tomamos um vinho ótimo, da Califórnia, e brindamos com champanhe (naquele tempo ainda se podia chamar qualquer espumante de champanhe). Fizemos as compras em um ótimo supermercado próximo e a Leilah, com ajuda de todos, preparou a ceia.
Conforme planejado pelo Cássio, o aniversário de casamento, Bodas de Prata de Leilah e Washington, seria comemorado em Lake Tahoe, local de turismo bem conhecido dos brasileiros, que no inverno se converte em estação de esqui. Conforme já comentei, esse passeio daria aos jovens a oportunidade de se iniciar nesse esporte e de curtir a neve bem de perto (algumas vezes na horizontal).
A viagem seria feita nos dois automóveis alugados – o “station wagon” grande e um Honda esporte vermelho escolhido pelo Cássio. Este aproveitou a chance de dirigir um carro “legal”, pois naquela ocasião o seu veículo era uma moto Kawasaki usada, a qual, aliás, ele comprara sem nos contar, pois sabia de nossa total reprovação ao uso de motocicletas por nossos filhos. Felizmente, ela foi depois substituída por um pequeno Honda Civic, aposentado muitos anos depois, por insistência de Julia, Leilah e eu.
Volto à viagem.
Foi necessário alugarmos correntes para colocar nos pneus, então permitidas nas estradas da Califórnia, para evitar derrapagens na neve que encontraríamos ao chegarmos às proximidades de Tahoe.
A viagem, de uns 400 km, durou cerca de 4 horas. O Cássio dirigiu o Honda e eu e Leilah nos revezamos no “station wagon”. Chegamos à noite e encontramos logo o hotel em que tínhamos feito a reserva.
O hotel, simples, porém confortável, ficava à beira do lago, numa espécie de praia gelada, a qual, na manhã seguinte, se mostraria sob um céu azul maravilhoso. Tirei uma foto da Leilah nessa praia, foto essa que considero a melhor que tirei na vida.


Leilah, o lago e a neve
Em Tahoe, fizemos passeios de automóvel em volta do lago, com paisagens deslumbrantes, pois o tempo ajudava.

Contrastes - Verde, azul e branco
As sessões de esqui tiveram lugar num campo de risco médio, adequado aos principiantes, pois poucos tinham tido, como o Cássio, alguma experiência nas descidas de montanha.


Jurema, garota nova, parte para a aventura
Leilah e eu (que estava então na flor dos meus 52 anos) ficamos em baixo, no restaurante, abrigados e nutridos com canecas de chocolate bem quente. Não conseguiríamos nem subir nos banquinhos que içavam as pessoas para o topo da montanha.

Leilah e Washington ficavam no sopé da montanha
E perto do chocolate quente
Participamos do programa de esqui, felizmente, apenas duas vezes. Temos uma foto, histórica e célebre na família, do grupo já preparado para a escalada, devidamente vestidos para esquiar, pois havia a facilidade de se alugar todo o equipamento.

O casal e o valoroso grupo de esquiadores

O destaque em Tahoe foi o jantar de comemoração das Bodas de Prata, num restaurante muito bom, com um ambiente agradável e acolhedor, circundado por uma respeitável camada de neve. Recordo-me que, mais uma vez, fomos chamados para a mesa da forma que ficou famosa no grupo: “Mr. Washington – party of nine!”. Era 30 de dezembro de 1984.
Voltamos a Palo Alto e comemoramos a passagem do ano na casa do Cássio, com nova ceia, muito animada, depois da qual os jovens foram passear em Stanford. Um réveillon muito diferente daqueles do Rio, com fogos, batuques na praia e festas em clubes ou casas de amigos.


Nessa viagem, antes e depois de Tahoe, fizemos um bom turismo na região.
Tenho dificuldade, agora, em afirmar onde estive em cada viagem à Califórnia, especialmente aquelas de anos atrás, mas certamente, também daquela vez, aproveitamos as várias atrações de São Francisco que menciono sempre: a Fisherman’s Wharf, o centro da cidade, o Golden Gate Park e as ladeiras famosas (como a “Lombard Street”), estas cenários de filmes para perseguições extremamente acrobáticas em automóveis, em alta velocidade. Sausalito também esteve no roteiro, bem como as localidades vizinhas a Palo Alto. Aproveitamos para fazer compras, claro, pois, especialmente naquela época, havia lá vários artigos que ainda não eram fabricados no Brasil ou que aqui eram muito caros.
Compra importante nessa viagem foi um forno micro-ondas que a Leilah tinha tentado comprar em outras viagens, mas eu sempre me opunha, pela dificuldade de carregar e pelas complicações que enfrentaríamos na Alfândega. Dessa vez, entretanto, com a ajuda dos jovens que nos acompanhavam, seria mais fácil levar o forno. Lembro-me deles embalando-o para a viagem. Durante trinta anos, esse milagre da indústria eletroeletrônica funcionou regularmente; um pouco lento em relação aos mais novos, mas dando conta do trabalho. É o primeiro objeto inanimado cuja velhice achei semelhante à minha.


Depois do dia primeiro de janeiro, o grupo se dispersou. O Luiz e o primo Marcelo ficaram mais um pouco em Palo Alto com o Cássio e depois visitaram a Occidental. O Francisco voltou para a Occidental, o Archie para a Universidade dele e a Paolinha para o Rio.
Leilah, eu e Jurema fomos para Chicago, onde fomos hospedados pelos Stilps, Polly e Tom, nossos grandes amigos desde os idos de 1968-1969. Já estava combinado deixarmos a Jurema para uma temporada de três meses na casa deles, em Wilmette. Ela ia frequentar como ouvinte uma classe de high school na escola em que a Polly lecionava. O casal fez muita festa para ela, adotaram-na temporariamente como filha (eles só têm filhos homens) e ela aproveitou bastante o programa.

A excursão de nossas Bodas de Prata foi notável; o “Party of Nine”, inesquecível. Foram dias de uma convivência excelente com os jovens, nos quais Leilah e eu nos divertimos muito e – tive essa impressão – nós, os dois mais velhos, também fomos uma boa companhia para eles.

Washington Luiz Bastos Conceição


sexta-feira, 1 de maio de 2020

Tangos - De pai para filho


Caro leitor ou prezada leitora:
Prossigo em meu programa de lhe oferecer mais de meus escritos neste tempo de isolamento social. Desta vez, considerando a gentil recepção dos leitores à crônica sobre boleros, trago a história de meu interesse por tangos, transmitido pelo meu pai, grande apreciador da música portenha.
Apresento-lhe a transcrição de mais uma parte do capítulo “A música e eu” de meu primeiro livro, o “Histórias do Terceiro Tempo”, publicado em 2009.
Dedico esta publicação a meu pai e seus contemporâneos que, muito provavelmente, transmitiram aos filhos o gosto por suas músicas preferidas.



Introdução

Nunca estudei música, não tenho bom ouvido e, quando tento cantar, desafino. Enfim, sou um ignorante que, humildemente, gosta de ouvir vários gêneros de música: desde marchinhas de carnaval, sambas, bossa nova, música brasileira em geral, boleros e tangos, até óperas e música clássica. Variado, não é?
Vocês poderão dizer: “Caramba (ou outra interjeição que costumem usar mais), Washington, deve ser tudo o que os seus contemporâneos curtiram ao longo da vida – qual é a novidade?”.




Tangos, meu pai e eu

Em 2005, Leilah e eu tiramos uma semana de férias e fomos a Buenos Aires.
Eu já tinha estado lá, a trabalho, por três vezes, gostei da cidade, mas não fiz nada de turismo. Além dos jantares com os colegas da IBM, tinha tido a oportunidade de, na primeira vez, nos idos de 1962, comer uma parrillada num dos carritos de madeira que havia na Costanera, na margem do rio; na segunda vez, em 1964, assisti a um show de variedades no Teatro Maipu, quando uma ótima cantora interpretou “Tiempos Viejos”, um de meus tangos preferidos; na terceira vez, em 1970, um colega argentino nos levou ao teatro para assistir a uma peça de Becket (desse programa, só me ficou a lembrança de que o teatro era muito bonito).
Leilah não conhecia Buenos Aires e se encantou. Para mim, depois de tantos anos (trinta e cinco, meu Deus!) encontrei muita coisa nova. Às suas atrações de metrópole de ar europeu, acrescentou Puerto Madero e outras edificações modernas que a tornam eminentemente turística. Entre outros programas, fomos assistir a uma peça musical, “Tanguera”, um balé de tango com um grupo simplesmente eletrizante – eles eram, ao mesmo tempo, bailarinos clássicos, acrobatas, cantores, atores com uma energia fabulosa. Também fomos a um show de tangos no tradicional Café Tortoni, onde, além do show, pudemos apreciar sua decoração “art nouveau”.
Esse ambiente me trouxe lembranças fortes de meu pai, que tinha no tango sua música popular favorita.

Meu interesse por tangos devo exclusivamente ao meu pai. Não aprendi a dança, quando moço não conseguia nem enganar, mas gosto muito dos tangos clássicos que meu pai ouvia no rádio e nos discos que tinha em casa. Tango é música da geração dele, dominou sua época de juventude. Foi, para ele, o que o bolero foi para mim. Não sei se ele conhecia já o tango argentino quando, muito jovem, formado professor, mudou-se para Santa Maria, no Rio Grande do Sul, para tentar a vida sozinho – era uma aventura e tanto! Lá, trabalhou como telegrafista da estrada de ferro, como professor e ainda tocava piano no cinema fazendo o acompanhamento dos filmes mudos. Era a década de 1920, meus caros!
Rapaz solteiro, desimpedido, frequentava os cabarés locais com um grupo de amigos, onde o tango era a música predominante, com sua dança sensual e suas letras dramáticas, muitas delas saudosistas, pessimistas e, até cínicas. Meu pai dançava tango e concluí que foi lá que aprendeu o Espanhol, que dominava. Quando, depois de algum tempo, voltou ao Paraná (dizem as más línguas que fugiu da namorada de lá porque o caso estava ficando sério e ele não queria, ainda, se casar), trazia a lembrança de seus tangos preferidos – e provavelmente partituras para piano – uma lista que foi ampliada ao longo dos anos.
Tomei conhecimento de tangos através dos programas de rádio que meu pai ouvia regularmente, principalmente na Rádio Gazeta, de São Paulo. Com a compra da vitrola, eu ouvia, mesmo sozinho, os discos dele, que passei a apreciar muito. Eram discos de 78 RPM, com uma música de cada lado, que guardávamos em álbuns. Os cantores mais conhecidos eram, claro, Carlos Gardel, Libertad Lamarque, Hugo del Carril, mas meu pai gostava mesmo era da Mercedes Simone, cuja voz era muito agradável. Em geral, a interpretação era das orquestras típicas, as quais tinham seus próprios cantores: Francisco Canaro, Juan Darienzo e Aníbal Troilo são nomes que me vêm à memória.
Eu gostava de cantar “Yira, Yira”, cuja letra tem versos terríveis: “Verás que todo es mentira, verás que nada es amor, que al mundo nada le importa, yira, yira...”; “cuando manyés que a tu lado se prueban la ropa que vas a dejar...”. Meu pai e minha mãe gostavam muito de “Caminito”, o preferido de minha irmã era “Madreselva”, que conta a história de uma pessoa que deixa, jovem, sua casa (com sua “vieja pared”, onde floresciam as “madreselvas” ) e volta desiludida da vida: “y así aprendi que hay que mentir para vivir decientemente”.
Mais recentemente, quando já morava no Rio, não pude deixar de apreciar o “Balada para um loco”, de Piazolla, cantado por Amelita Baltar (“Ya sé que estoy piantao, piantao, piantao...”).
Meu preferido é, definitivamente, “Tiempos Viejos”, que teve uma interpretação perfeita de Mercedes Simone. Vou abusar da paciência de vocês e transcrever quatro versos:
                     “¿Te acordás hermano que tiempos aquellos?
                      Veinte y cinco abriles que no volverán...
                      ¡Veinte y cinco abriles! ¡Volver a tenerlos!
                      ¡Y cuando me acuerdo me pongo a llorar...!”

Nos últimos anos, o tango vem sendo motivo central de vários filmes que enfocam a dança, ressaltando sua atração misteriosa.
Na verdade, para mim, os tangos são uma espécie de porre musical, que a gente gosta de tomar de vez em quando.

Washington Luiz Bastos Conceição



Suplemento:

Como ilustração da crônica, os leitores poderão ouvir alguns dos tangos que selecionei no Youtube e relaciono abaixo, indicando os respectivos links. Nessa seleção, procurei alguns números musicais e intérpretes que mencionei na crônica e, como aconteceu com os boleros, fui surpreendido com as gravações de intérpretes de gerações recentes. Em geral, são áudios, mas há algumas apresentações com slides e vídeos.

“Tiempos Viejos”, com Mercedes Simone.

“Caminito”, com Plácido Domingo

“Yira yira”, com Carlos Gardel

“Balada para um loco”, com Amelita Baltar

“Uno”, com Hugo del Carril

“Nostalgias”, com Libertad Lamarque

“Alma del Bandoneon”, com Francisco Canaro e sua Orquestra


“Poema”, com os bailarinos Sergey Kurkatov e Yulia Burenicheva e a orquestra típica "Solo Tango".


“A media luz”, com Carlos Gardel

“En esta tarde gris”, com a orquestra de Anibal Troilo

“Cambalache”, com Enrique Santos Discépolo

“Adiós, muchachos”, com Germán Vega ao acordeom

“Percal”, com Mercedes Simone

“Volver”, com Carlos Gardel

“La cumparsita”, com a Orquesta Típica de Tango Band-O-Neon