sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

O “Making Of” de uma crônica


Leilah e eu, ultimamente, vimos assistindo a filmes na televisão, recorrendo, principalmente, à Netflix. De vez em quando, escolhemos um DVD de nossa discoteca para revermos algum dos “nossos” filmes. Alguns discos oferecem, além do filme propriamente dito, como extra, o “making of”, ou seja, cenas de bastidores filmadas durante o trabalho da equipe na feitura do filme.
Costumamos ver o “making of” depois de assistirmos ao filme, porque é divertido e sentimos uma certa aproximação com os atores e o diretor.
Ao concluir e publicar minha crônica mais recente (Osmar e Jurema - A Vila Olímpia e os cenários do início dos anos 1950), tive vontade de comentar com os leitores alguns fatos ocorridos durante seu desenvolvimento. Então, lembrando do “making of” dos DVDs e de que gosto de assistir a eles, decidi escrever uma crônica sobre os bastidores da outra.



Há já algum tempo, depois de ter escrito alguns livros de memórias contando histórias de minha vida, eu pretendia escrever sobre a vida de meus pais, um casal comum do século vinte que, embora não sendo famoso, teve uma vida repleta de desafios e vitórias, com pleno sucesso na construção da família.
Como “pretensão e água benta cada um usa quanto quer”, entendi que poderia fazer algo como os grandes escritores que, criando personagens e famílias fictícias, inserem suas histórias nos fatos verídicos da História.  De uma forma semelhante, mas com ênfase nos personagens, decidi escrever um livro sobre a vida de meus pais, em suas várias fases, descrevendo o ambiente histórico que os cercava. No meu caso, portanto, os personagens comuns são reais. O que estou fazendo diferente, desta vez, é publicar previamente as histórias como um romance de folhetim, na forma de crônicas no blog, para depois reuni-las no livro.

Em cada crônica da série, estabeleço inicialmente o período da vida de Osmar e Jurema de que vou tratar, período este determinado por uma combinação dos locais de residência, a evolução da família e acontecimentos históricos marcantes, como a segunda guerra mundial, por exemplo. Depois, faço uma descrição do ambiente doméstico, do cotidiano do casal e dos principais acontecimentos vividos pela família no período estabelecido. Para tanto, recorro à memória, tanto pelo que me contaram como pela minha própria observação desde criança, além de alguns raros registros pessoais. Na parte dos cenários históricos, minhas lembranças precisam ser reforçadas pela leitura de livros de História.

Já comentei com os leitores que tenho encontrado dificuldade em apresentar na mesma crônica as fases da vida do casal e o cenário histórico correspondente, porque o texto resulta muito extenso para uma crônica. Por essa razão eu vinha publicando as crônicas em partes, o que agora não me parece boa solução, pois o intervalo entre a publicação de uma parte e outra pode fazer com que o leitor perca a conexão dos personagens com os cenários da fase correspondente. Concluí que devo deixar por conta dos leitores a divisão ou não da leitura em partes.



No caso da crônica “Osmar e Jurema - A Vila Olímpia e os cenários do início dos anos 1950”, minha publicação mais recente, o texto resultou maior do que o dobro do texto de cada uma das publicações da série. A elaboração durou cerca de um mês calendário, pois tenho outras atividades e não dedico muito tempo à atividade de escrever, não sou rápido e ando muito preguiçoso.
Passo, agora, ao “making of” da crônica.



Primeira etapa

Decido que a crônica tratará do período em que a família morou na Vila Olímpia, bairro de São Paulo. Começo a descrever o bairro daquele tempo e nossa casa, sem necessidade de grandes consultas. Assim mesmo, vou ao mapa do Google para conferir o nome das ruas e, até, vejo a imagem do sobrado, que foi transformado, aparentemente, em um estabelecimento comercial, com uma fachada muito diferente. A Rua Baluarte está toda asfaltada e teve sua numeração alterada. Vejo que o terreno em que ficava a Casa do Ator e as construções vizinhas está hoje ocupado por uma escola. A Wikipedia me mostra as fotos da Vila Olímpia e da Marginal Pinheiros. Tudo tão absurdamente diferente! Penso: “Claro! Tinha de estar, Washington, depois de 70 anos!”. Continuo escrevendo sobre nossa vida na Vila Olímpia, recorrendo ao meu irmão Luiz Antônio, que me ajudou com algumas informações.
Terminado o primeiro rascunho da parte que trata da vida da família, imprimo o texto e, como de hábito, passo à Leilah para sua primeira apreciação e comentários (o que ela sempre faz de maneira construtiva, com boas sugestões – reconheço e admiro a paciência dela).
Pergunto a ela: “O que você achou?”. “Está bom, apenas acho que você não deve mencionar o nome de todas as pessoas”. Concordei, pois realmente o texto ficara parecido com um relatório.
Guardo o rascunho para publicação com as outras partes da crônica.

Segunda etapa

Para resumir o cenário internacional, recorro, como procedimento normal, a alguns livros, para verificar e completar minhas lembranças dos fatos históricos, em geral um tanto vagas. Para as crônicas anteriores, os livros sobre a segunda guerra mundial serviram muito bem, mas, de agora em diante, eu precisava de outro livro que cobrisse o século, além do “Uma breve história do mundo”, de Geoffrey Blainey, que já venho usando, mas, dentro de seu objetivo, tem menos detalhes do que eu preciso.




Comprei o e-book “A História do Século XX”, de Martim Gilbert (ao lado, imagem da capa) e passei à sua leitura. Narra os acontecimentos do mundo todo de uma forma detalhada. Nesta fase de leitura e apontamentos, releio também, dos livros que venho usando, os capítulos referentes ao pós-guerra; concluo que a descrição do cenário internacional poderá ser bem resumida.

Escrevo o primeiro rascunho deste cenário.



Terceira etapa

Começo a trabalhar no cenário de São Paulo e releio, do livro “A Capital da Vertigem” (capa ao lado), de Roberto Pompeu de Toledo, os capítulos que tratam do início dos anos 1950, especialmente das comemorações de Quarto Centenário da cidade de São Paulo.
Lembro de muita coisa daqueles anos, quando estudante da Politécnica, mas o livro descreve todos os eventos brilhantemente. Aliás, toda vez que leio algo do autor penso: “Ele deve ser parente (talvez filho ou sobrinho) do Dr. Diderot Pompeu de Toledo, médico amigo de meus pais, que também tratou de mim.”

Escrevo o primeiro rascunho sobre o cenário paulistano, que se caracteriza pelo crescimento da cidade e pelas festividades.
Faço algumas revisões do rascunho, cortando alguns detalhes dispensáveis, mas constato, preocupado, que até esta parte a crônica já está bem mais extensa do que aquelas que venho publicando. Acho que terei, novamente, de fracionar a publicação desta crônica, o que eu preferiria não fazer.

Quarta etapa

Entro na fase mais difícil do trabalho – o tempo do segundo governo Vargas, desta vez presidente eleito. Começo pela releitura dos dois livros aos quais venho recorrendo há já algum tempo. O livro “História do Povo Brasileiro”, de Jânio Quadros e Afonso Arinos de Melo Franco, e o de Boris Fausto, “Getúlio Vargas”.
O primeiro (foto ao lado), publicado em 1967, é uma coleção de seis volumes, muito bem encadernados, com capa dura e um papel mais pesado, branco, surpreendentemente bem conservado.
Cada volume tem cerca de 300 páginas de 15,5cm por 23,5cm, incluindo algumas estampas. Jânio Quadros se incumbiu da fase colonial e Afonso Arinos da fase nacional. É uma preciosa herança de meu pai.
O livro tem, quanto aos capítulos que estou relendo, um enfoque histórico predominantemente político, com a particularidade de Afonso Arinos, destacado líder parlamentar nacional, ter atuado naqueles anos críticos, ou seja, estava na confusão (como se diz em futebol, estava entre as quatro linhas).

O segundo (foto ao lado), “Getúlio Vargas”, impresso em 2006, com capa comum, está bem conservado; tem mais de 200 páginas em tamanho 13cm por 21cm.
Eu já havia lido o livro todo e encontrei em Boris Fausto, historiador e professor, um autor equilibrado quanto ao perfil de Getúlio. Para esta crônica, releio os capítulos correspondentes ao segundo governo de Vargas.
Comentei com Leilah: “O livro do Boris Fausto trata da vida de Getúlio. Para estudar os fatos históricos nos anos seguintes a 1954, vou precisar de outro livro de história do Brasil. Vou ter de pesquisar, pois alguns que já examinei não me pareceram confiáveis.” Leilah, em uma de suas intervenções muito oportunas, lembrou: “E o livro ‘De Getúlio a Castelo’, que temos aqui em casa?”. “Não sei se ainda temos, respondi, acho que ele estava entre aqueles livros velhos, danificados, de que nos desfizemos na última reforma do apartamento, mas vou procurar”.

Tive sorte; achei, até com facilidade, o livro de Thomas Skidmore (foto ao lado); embora em más condições para leitura, com o papel amarelecido e exigindo cuidado no manuseio para não desmontar, decidi usá-lo.
Passo imediatamente à sua leitura. Como ele também cobre o período de que trata a crônica, já foi de muita utilidade. Em especial, sua análise do panorama econômico e das medidas tomadas pelo governo de Getúlio me serviram bem.
Faço minhas anotações das leituras, inclusive das consultas à Wikipedia, e escrevo o rascunho correspondente ao cenário brasileiro sob o segundo governo de Getúlio. A dificuldade de apresentar os fatos de uma forma resumida está maior do que a habitual.
Ao concluir o primeiro rascunho desta parte da crônica, leio na tela do Word a quantidade de palavras do texto – é um número aproximadamente igual à soma das palavras das outras partes da crônica.
Preocupado e um tanto desanimado, comento com a Leilah: “Não consigo resumir o cenário histórico de forma que o leitor consiga ler a crônica e não quero dividi-la em partes. Estou preocupado porque eu queria tê-la publicado já no mês passado.” Leilah faz uma observação que reflete o que eu estou sentindo: “Parece que escrever, que devia lhe dar prazer, está causando preocupação para você.”
Resolvo ir em frente, buscar uma solução, que depois me pareceu óbvia: “Por que não deixar a divisão da leitura por conta do leitor?” Cada um vai ler como quiser, interrompendo a leitura e retomando-a (se achar que vale a pena) quando lhe for conveniente. As interrupções deverão durar menos do que meu habitual intervalo de publicação.
Crio alma nova e, com determinação, concluo a crônica, combinando da melhor maneira possível minhas recordações daqueles anos com o que estudei nos livros. Como comento com os amigos, para escrever um parágrafo tenho de estudar bastante, pois, embora não me arvore em historiador, não quero escrever disparates. Encontrei uma dificuldade: alguns números de economia em que os livros divergem; como não são essenciais para o espírito da crônica, mantenho aqueles em que não há discrepância.

Quinta etapa

Reúno os textos elaborados nas quatro etapas anteriores em um arquivo Word único, na sequência: vida da família, cenário mundial, cenário nacional e cenário local (São Paulo) deixando para o final a festa do quarto centenário.
Imprimo o texto completo para a Leilah rever – quatorze páginas em folhas tamanho A4, fonte Verdana, tamanho 11. A santa Leilah faz a revisão, faço as alterações necessárias, copio o texto para o blog, passo à releitura no blog e, como sempre, mudo alguma coisa antes de publicar.
A seguir, faço a publicação e a divulgação para os amigos. E tenho a grande satisfação de ter escrito mais uma crônica sobre meus pais.


Ao longo do trabalho, houve um lance de emoção: quando encontrei o livro de Thomas Skidmore, aquele velho exemplar que pensei que tivesse perdido, encontrei na primeira página a dedicatória de quem me presenteara com o livro, escrita com sua caligrafia especial e nas regras ortográficas de 50 anos atrás:

“Ao meu querido Washington, no transcurso de mais um seu natalício – com estima e grande aprêço, seu Pai”


Washington Luiz Bastos Conceição