domingo, 27 de outubro de 2019

“Irish Coffee”


Lauro, filho do Sérgio Bastos (este, meu grande amigo de juventude e primo da Leilah, minha mulher) me presenteou há algum tempo com uma garrafa de uísque, que guardei para uma comemoração especial. Em agosto, na data de seu aniversário, resolvi comemorar com ele, à distância, abrindo a garrafa e tomando duas doses, brindando via WhatsApp. Não sei por quê, eu pensava que era um uísque puro malte; ao abrir a garrafa, verifiquei que era um uísque irlandês, triplamente destilado e muito bom, que me fez lembrar de minhas visitas ao café Buena Vista, em São Francisco, na Califórnia.

Leilah e eu, até alguns anos atrás, viajamos à Califórnia com frequência, visitando nosso segundo filho, nora e netos, que moram em uma daquelas cidades simpáticas do Vale do Silício. Aproveitávamos, então, para fazer turismo pelo “Golden State”, conhecendo novas regiões e revendo aquelas já conhecidas. A visita à encantadora São Francisco era obrigatória, com um programa tradicional nosso, que é, hoje, padrão, realizado por todas as pessoas com quem converso sobre viagens à Califórnia. A particularidade, no nosso caso, é que esse roteiro, como outros na região, fazemos desde 1969, quando da mudança de volta da família, dos Estados Unidos para São Paulo, após um período de residência temporária em Chicago.
Esse programa incluía, sempre, o passeio pelo "Fisherman's Wharf", que descrevi assim em meu livro “A Califórnia e Nós”, publicado em 2015:

“Em vários capítulos deste livro menciono lugares em São Francisco e vizinhança que visitamos sempre que vamos à Califórnia, numa espécie de ritual, de reverência, quase uma obrigação que cumprimos prazerosamente, pois “matamos a saudade”. Estão nesta categoria pontos muito interessantes da cidade.
Começo com o "Fisherman’s Wharf", em São Francisco – com seus restaurantes, lojas, o Café Buena Vista e a fábrica de chocolate Ghirardelli, estabelecimentos preparados para receber turistas de todo o mundo. Não me incomodo de ser mais um deles, apenas procuro não me deixar explorar com bugigangas. Quero tomar meu “Irish Coffee” no Buena Vista,  acompanhado ou não de casca (frita) de batata; quero almoçar peixe ou frutos do mar (incluindo caranguejo, se possível), com uma taça de vinho, em um restaurante indicado pelo Cássio, meu filho, na ocasião (pois o desempenho deles varia com tempo); ultimamente, tem sido o Scoma’s; depois, quero provar um chocolate no Ghirardelli e comprar umas barras para levar para casa. E, tudo durante o dia, caminhar por aquelas ruas movimentadas onde as pessoas, bem-humoradas por estar de férias, passeando, até acham graça quando um maluco barbudo se esconde num canto qualquer para dar susto nos transeuntes.”


O Buena Vista e o bondinho famoso. (foto copiada do site do café)
Na última vez que estivemos no Buena Vista, eu trouxe de lá um folheto com a história e a receita de seu famoso “Irish Coffee”, mas não havia pensado, ainda, em prepará-la, porque me pareceu um tanto complicada e, o que é básico, não costumo ter uísque irlandês em casa. Com o presente do Lauro, decidi tentar fazê-lo, com a colaboração da Leilah. Ela providenciou o creme de leite, que é acrescentado à mistura do uísque com o café e um pouco de açúcar. Há todo um preparativo que envolve aquecer fortemente o copo, o qual deve ter características específicas para a operação.


A preparação do "Irish Coffee" (foto copiada do site do café)
Conseguimos seguir as especificações e resultou um drinque muito bom e bonito que degustamos com prazer. Uma dose para cada um foi suficiente e combinou muito bem com o frio moderado do inverno carioca. Foi um sucesso.
Essa nossa “cerimônia” do “Irish Coffee”, provocou uma evocação das viagens que fizemos por aquela região tão bonita e agradável. Além do "Fisherman's Wharf", lembramos de Sausalito e Tiburón, pequenas cidades de turismo ao norte e próximas de São Francisco, nas margens da baía, com suas paisagens encantadoras, parques, casas e edifícios que mesclam arquitetura tradicional e contemporânea, e bons restaurantes, muito bem preparados para receber turistas; do Napa Valley, mais ao norte, e suas vinícolas; de Calistoga, com seu gêiser e banhos de lama; de Bodega Bay, aquela cidadezinha litorânea dos pássaros que se tornou famosa pelo extraordinário filme de  Hitchcock; da surpreendente Mendocino, cidade histórica no norte do estado que parece cenário de filme antigo, à qual chegamos dirigindo pela One, rodovia famosa da costa oeste, com suas paisagens impactantes e seus viadutos monumentais. E, mais, lembramos dos passeios que fizemos ao sul do Vale do Silício, no litoral, por Santa Cruz, Monterey e a encantadora Carmel, cidades também muito famosas e conhecidas de vários de nossos amigos brasileiros, com seus “fisherman’s wharfs”, praias e parques, com destaque para o Aquário de Monterey e a Missão de São Carlos Borromeu,  em Carmel, fundada pelo Padre Junipero Serra.

Aos 87 e 84 anos de idade, respectivamente, eu e Leilah reconhecemos que é muito difícil, para nós, voltarmos a fazer uma viagem aérea de 17 horas de duração total, mesmo com o apoio de cadeiras de rodas nos aeroportos e com um seguro saúde de emergência.  
A "happy hour" com o “Irish Coffee” nos levou a viajar (no bom sentido) em nossas recordações, sem tristeza, voltando a viver momentos muito agradáveis da vida.

Muito se critica quem quer viver no passado, queixando-se das vicissitudes do presente. Não é este realmente nosso caso, convivemos bem com nossas limitações, procurando manter-nos ativos nas tarefas que ainda podemos realizar. Reviver eventos prazerosos do passado não é uma atitude negativa, pois nos dá uma sensação de termos aproveitado o que a vida nos ofereceu de bom. É uma posição semelhante à de Pablo Neruda ao escrever seu livro de memórias, expressa claramente no título: “Confieso que he vivido”.

P.S. Ao caro leitor ou prezada leitora que resolver experimentar o “Irish Coffee”, faço voz de locutor de televisão e peço encarecidamente que beba com moderação.

Washington Luiz Bastos Conceição


Notas:
1. Uma tradução de “Fisherman’s Wharf” é Cais dos Pescadores.
2. Dias depois de nossa “happy hour” acima, encontrei no cardápio de um café, aqui no Rio, o item “Irish Coffee” e resolvi experimentar. Era outro “drink”: uma pequena dose de uísque escocês com café, “soterrada” por uma quantidade enorme, desproporcional, de creme “chantilli”. Não gostei.
3. O site do Buena Vista é www.thebuenavista.com .
4. O livro “A Califórnia e Nós” foi publicado com fotos coloridas, inicialmente na versão digital (e-book) e, a seguir, na versão impressa. Esta resultou muito cara em relação ao objetivo do livro. Decidi, então, publicar a versão impressa em branco e preto, com o título “Nós e a Califórnia”.
Para quem se interessar pelo livro, recomendo o e-book, disponível na www.amazon.com.br (pesquise pelo meu nome).  É bem baratinho e pode ser lido no celular, no computador e no tablet, mediante a instalação gratuita do programa Kindle.
5. Junipero Serra foi um missionário espanhol, franciscano, que fundou várias missões na Califórnia, no século XVIII. Foi canonizado em 2015.

sábado, 12 de outubro de 2019

"Sabadei"


No sábado passado, Jurema, minha filha, comemorou seu aniversário. Era uma data importante, para ela e para nós da família.
Acontece que ela tem uma infinidade de amigos, de várias rodas, e não dá para fazer uma reunião pequena. Teve de reservar um restaurante para poder receber todos seus convidados. Claro, os pais, irmãos e cônjuges estavam incluídos. Portanto, lá fomos nós, Leilah e eu, para um restaurante na Marina da Glória, aqui no Rio, área que não visitávamos havia vários anos. A última vez em que estivemos lá, talvez mais de dez anos atrás, foi para um passeio de barco promovido por uma das noras, Adriana, em seu aniversário.
Chamamos um carro por um aplicativo, planejando chegar ao local da festa às seis da tarde, mas o “Rock in Rio” havia posto a cidade em ebulição, de forma que o trânsito estava imensamente congestionado em todos os caminhos. O pobre satélite não conseguiu nos dar uma rota que fluísse razoavelmente. Levamos mais de uma hora e meia para chegar ao destino, fazendo um percurso que, em condições normais, teria sido feito em meia hora.
Ao chegarmos, finalmente, à Marina da Glória, ficamos admirados com a total mudança da área em relação ao que tínhamos visto anos atrás.
O automóvel nos deixou frente a uma portentosa escadaria, ponto de embarque e desembarque de passageiros de taxi, escadaria essa que leva à entrada do edifício do centro de convenções da Marina. Seu subsolo é a área de estacionamento do complexo. Ao lado do edifício, há outra escadaria que leva aos ancoradouros e aos restaurantes. Devido a nossa dificuldade de locomoção, Jurema providenciou para que um carrinho elétrico da equipe de segurança da Marina fosse nos buscar para levar-nos ao restaurante. Lá chegando, encontramos uma reunião animada.
O restaurante fica em um local muito bonito, elevado em relação ao cais, em meio a um terreno gramado de onde apreciamos uma bela paisagem noturna que abrange os edifícios que ficam de frente para o aterro do Flamengo, desde a Rua do Passeio, no centro, até a enseada de Botafogo, passando pela Avenida Beira-mar. Mais próximo, divisávamos um ancoradouro com alguns belos barcos.
A foto abaixo, tomada naquela noite, mostra parte dessa vista espetacular:

Foto por Suely Porto Leite - 05/10/2019
 Jurema nos recebeu e nos encaminhou para a mesa que nos tinha reservado.
No trajeto, fomos cumprimentados por vários amigos dela, entre os quais alguns já nossos conhecidos que, pela iluminação à meia luz, pelo fato de vários rapazes terem deixado crescer a barba e pela nossa deficiência de memória visual, tivemos, de imediato, dificuldade em identificar. Afinal, éramos dois idosos velhos de guerra, exceções entre os convidados por sermos os pais da aniversariante, frente a pessoas mais jovens que não víamos havia algum tempo.
Sentamo-nos à mesa com um casal muito amigo e recebemos a visita e os cumprimentos de vários convidados, que nos homenagearam com sua atenção.
O DJ ("Disk Jockey"), em plena atividade, estava nos brindando a música de fundo.
Jantamos comida italiana com uma garrafa de vinho e ficamos acompanhando a chegada dos novos convidados e o movimento todo da festa.
Experiente em festas de aniversário, Jurema quis apagar logo as velinhas e cantar os parabéns para evitar que, mais adiante, esta cerimônia sugerisse que a festa estaria terminando; ela queria uma festa solta.  Depois da cantoria (que incluiu, como é hábito na turma dos meus filhos, o hino do clube Flamengo) e de servir o bolo, abriu-se a pista para a dança e, aí, a festa pegou fogo com música de discoteca e o ritmo com a batida forte que me parece (os mais jovens que me perdoem) um bate-estaca. O fato é que a turma se animou e dançou para valer. Também dançaram samba, vários dos convidados com muita competência, especialmente aqueles do grupo de samba da Jurema, verdadeiros passistas que nos cumprimentam com a reverência que o mestre-sala faz à porta-bandeira das escolas de samba.
Lá pelas tantas, Jurema encomendou ao DJ uma sessão especial de Caymmi em atenção a mim; fizeram uma roda para, inicialmente, ela dançar comigo e Leilah dançar com Alexandre, seu marido; a seguir, dançamos, eu e Leilah, o que fizemos como nos velhos tempos, de rosto colado.
Passado esse interregno, mandaram ver música baiana, com uma dança atlética vertiginosa em que eles mostraram uma energia intensíssima. Fiquei muito impressionado, pois a média de idade dos dançarinos está acima dos cinquenta anos. Realmente, as pessoas, hoje, parecem ter o vigor daquelas que, no meu tempo, tinham uns vinte anos menos.

Um dos amigos, que estivera em festa de nossa família, perguntou se eu iria fazer um discurso. Respondi que, se me pedissem, eu faria; e passei a me preparar mentalmente para falar. Entretanto, não houve oportunidade, a música não parou; a animação dos dançarinos não arrefecia e o DJ era incansável. Concluí que uma parada para um discurso, por mais breve que fosse, iria atrapalhar.
O discurso que eu teria feito seria curto e, mais ou menos, algo assim:


“Caríssimos amigas e amigos de Jurema e de seus irmãos que, pela lei transitiva da amizade, se tornaram, também, amigos de Leilah e Washington:
Venho agradecer a todos a valiosa gentileza da presença à comemoração do aniversário de minha filha, especialmente nesta noite em que está muito difícil transitar pela Cidade Maravilhosa.
Tenho pouco a falar, pois já contei a história da chegada da Jurema em várias oportunidades.
Não vou repetir que, quando Leilah e eu nos casamos, tínhamos o objetivo de ter um casal de filhos e que, depois do nascimento do Luiz, encomendamos a Paula – que não veio; tivemos o Cássio e renovamos a encomenda da menina – chegou o Francisco. Então, considerando que uma das minhas primas teve oito filhos homens antes de desistir da menina, paramos com as encomendas. Mais de três anos depois, quando estávamos morando temporariamente em Chicago, a surpresa: Leilah ficou grávida. Imediatamente, ela concluiu que essa criança, por teimosa, seria uma menina. E acrescentou: uma pessoa teimosa que conheço é sua mãe; a menina terá o nome dela. Peguei minha mulher na palavra.
Não vou repetir que meus colegas americanos daquela temporada acharam graça quando lhes contei que minha filha nasceria no Brasil com um carimbo nas costas: “Made in USA”.
E não vou repetir que esta moça de um metro e oitenta de altura nasceu prematura, de sete meses.
Quando anunciei o nascimento de minha filha aqui no Rio, uma colega de trabalho, entusiamada, afirmou que Jurema era um nome muito forte, de mulher bonita e determinada. Acreditei firmemente, porque minha mãe era assim.
Bem, a garota cresceu, sempre muito amiga dos pais e dos irmãos, desenvolveu-se e está encarando a vida com destemor.
A presença de vocês nesta noite é uma prova cabal de que uma das qualidades de Jurema é saber fazer amigos.
Pessoal, estas eram as poucas palavras que eu queria lhes dirigir hoje. Fico por aqui.
Mais uma vez, OBRIGADO, GALERA!”


Na hora de irmos para casa (a festa continuava animada) fomos, Leilah e eu, brindados com uma carona muito especial, de um casal muito amigo de meus filhos, com a particularidade de ela ser a médica, clínica e geriatra, que cuida de nós. Seu marido é da turma do Leblon, companheiro dos meninos desde a juventude e, como eles, flamenguista doente. Ao aceitar o convite da carona (eles moram em prédio bem próximo ao nosso) brinquei dizendo que seria ótimo, pois teríamos acompanhamento médico a bordo.
Ao deixarmos a Marina da Glória, nossa médica dirigindo, tivemos de dar uma grande volta, passando pelo aeroporto Santos Dumont, para pegarmos a pista de volta do aterro em direção à zona sul. Ao nos aproximarmos do túnel que leva a Copacabana, fomos parados por uma blitz da Lei Seca. Por mais que tenhamos notícia de casos de conhecidos nossos que passaram por essa experiência, há sempre uma certa tensão ao ser parado à noite e ser abordado por um policial armado. Nossa médica teve de mostrar os documentos dela e do veículo, descer do carro e se dirigir a uma tenda para soprar o bafômetro. Procedeu com muita calma. Nós outros permanecemos no automóvel. Ela voltou em pouco tempo e se saiu perfeitamente bem, pois não havia ingerido bebida alcoólica. Seguimos viagem.
Carona especial, nos deixaram na garagem de nosso edifício, na porta do elevador. Poderia haver, para o velho casal, um fim de festa melhor?
Fomos nos deitar e dormimos muito bem.

Washington Luiz Bastos Conceição



Notas:
  1) O título desta crônica é um neologismo inspirado numa forma de expressão agora usada pelos meus filhos e seus amigos nas mensagens pelo WhatSapp, que consiste em derivar um verbo de um substantivo para indicar, resumidamente, uma ação específica. “Sextar”, por exemplo, pode significar algo como viver, aproveitar, a sexta-feira. Portanto, no dia 5 de outubro, digo que Leilah e eu “sabadamos”. Hoje, ao publicar esta crônica, "sabadei" de novo.
 2) Mais informações sobre a Marina da Glória poderão ser encontradas no site: https://marinadagloria.com.br/ .