quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Credidio

Ultimamente, Credidio e eu nos víamos quando ele vinha ao Rio com Leila, sua esposa, para, principalmente, verem a filha e a neta carioca. Devido a dificuldades de agenda, raramente jantávamos juntos, como fazíamos tempos atrás, de forma que eu o encontrava no café da manhã do Zona Sul, supermercado na Rua Dias Ferreira, no Leblon. Com ele, habitualmente estava o Gentil (Carlos Gentil Vieira), nosso amigo comum, que sempre o acompanhava por aqui. Eram conversas calmas, sem horário definido, muito agradáveis.
Dedicado, já há alguns anos, ao conhecimento e degustação de vinhos, era um “enófilo” – tinha um cartão de visitas com essa designação (não se dizia “enólogo”). Declarava, da forma radical e definitiva que era uma característica sua, que seu assunto era vinho. Um exagero, claro, pois conversávamos sobre temas os mais variados, que incluíam aa famílias, e não tratávamos de política e futebol. E mais, o assunto vinho era provocado por nós outros, pois ele cuidava para não exagerar a ponto de se tornar “enochato”. Mas, quando lhe perguntávamos sobre um determinado tipo de vinho, alguma visita sua a uma vinícola, no Brasil ou no exterior, ou uma degustação, ele realmente tinha o que contar e comentar, reforçando suas informações com dados, como, por exemplo, as notas do “Wine Spectator” (site especializado em vinho).
Quando  o casal esteve no Rio há pouco mais de dois meses (início de junho?), Leilah, minha esposa, e Leila marcaram um encontro para jantarmos os quatro, o que não aconteceu porque o Credidio estava sentindo fortes dores nas costas. Voltaram no dia seguinte a São Paulo. Sentimos muito, ficamos um pouco preocupados, mas sabíamos que ele se cuidava, assistido por médicos que, como todo mundo, se tornaram seus amigos.
Em São Paulo, ele fez uma série de exames médicos, cujos resultados acompanhávamos através das notícias da Leila e do Gentil.
Os médicos descobriram câncer em sua coluna, já na condição de metástase. Chegou a fazer radioterapia e quimioterapia, mas não resistiu e faleceu. O processo todo, entre a manifestação das dores nas costas e seu falecimento, foi muito rápido (dois meses) e extremamente chocante para a família e os amigos.
A última vez que falei com Credidio foi pelo Skype, uns dias antes de sua partida. Ele estava em casa, entre internações hospitalares, e conversamos bastante; estava sem dor, mas se queixou de dificuldade de locomoção. A comunicação seguinte que recebi foi da Leila, por telefone, algumas horas antes do falecimento: “Washington, seu amigo está indo embora”. Mais tarde, outro telefonema, com a dolorosa confirmação.


Conheci Credidio Rosa quando ele entrou na IBM, em São Paulo, uns dois anos depois  de mim. Formado em engenharia no ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), foi selecionado pela Empresa juntamente com alguns de seus colegas para trabalhar como analista de sistemas (computadores eletrônicos) junto aos clientes.
De baixa estatura, pele clara e cabelos castanhos, não parecia se importar por ser chamado de baixinho – o que certamente o acompanhou a vida inteira. Mas chamava a atenção por seu humor, o espírito gozador que deve ter desenvolvido no ITA, seu bom relacionamento com os colegas e seu desempenho no trabalho.
Era início da década de 1960. Naquela época, assumi a gerência do Centro Educacional de São Paulo (unidade de treinamento para clientes), de modo que tivemos pouco contato de trabalho, embora nos víssemos com frequência no escritório.
Um grupo de colegas da IBM jogava futebol (de salão e de campo, até na várzea). Eu participava do grupo. O Credidio e dois colegas, também formados no ITA, os três bons de bola, aderiram, o que nos aproximou.
De 1968 a 1969 trabalhei pela IBM Brasil em Chicago e, na volta ao Brasil, em 1970, me mudei para o Rio. Credidio continuava em São Paulo e, pela primeira vez, tivemos relacionamento direto de trabalho quando ele assumiu a gerência staff de vendas do Sistema 3 no Distrito Sul da Empresa, com sede em São Paulo. Eu era o gerente de marketing daquele produto, na Matriz, no Rio e atuávamos em conjunto. Aqui, um comentário: pareceu-me que algum diretor teve a ideia brilhante de associar o baixinho Credidio ao novo sistema que, o menor em tamanho, tinha um ótimo desempenho, era muito eficaz.
Depois, ele foi designado para um cargo gerencial na Matriz, no Rio, e morou aqui por alguns anos. Foi nesta ocasião, mediante colegas-amigos comuns, que tivemos a maior aproximação. Nosso relacionamento se tornou amizade, estendida aos familiares.
Nesta fase, facilitado pelo ótimo relacionamento das respectivas esposas, e tendo, ambos, filhos pequenos, tivemos bastante convivência. Os programas incluíam praias no Rio, até churrascos em Grumari, e passeios nos fins de semana, especialmente em Cabo Frio.
No Rio, ele formou um grupo de amigos com colegas da IBM, vizinhos dele e até conhecidos de juventude da Leila. Casais com filhos,  frequentávamos o Piraquê (sede esportiva do Clube Naval, na Lagoa Rodrigo de Freitas), jantávamos em restaurantes e, de vez em quando, reuníamo-nos nas casas dos participantes.
Naqueles anos, intensificou-se a divulgação, mediante livros e palestras, da necessidade dos executivos cuidarem melhor da saúde, bem antes da atual febre universal de exercícios nas academias de ginástica. Credidio organizou uma caminhada noturna de um pequeno grupo de amigos. Após o trabalho, aí pelas 19 horas, lá íamos nós, os casais, para o calçadão de Ipanema e Leblon. A caminhada era em ritmo de trote, decretado por ele, seguindo recomendação médica, pois ninguém era atleta. O exercício durava cerca de uma hora e voltávamos para casa, pois drinques, petiscos e jantares eram programas para o fim de semana.
Antes de virem para o Rio, Credidio e Leila, já com as três meninas, moravam em uma casa no bairro do Brooklin, com um grande quintal, que aproveitaram muito. Credidio se especializou, então, nos churrascos de fim de semana – não aqueles meus aqui nas praias do Rio, de amador, mas os que começavam com a compra ultra-criteriosa da peça de carne, depois cortada por ele mesmo, em casa, com facas apropriadas e o conhecimento de como cortá-la, nos pontos  e direções corretos, segundo suas fibras, limpando-a cuidadosamente. E mais, colocava, junto ao carvão da churrasqueira, uma pequena lata d’água. Parece-me que era para a carne não ressecar (os leitores profissionais poderão esclarecer este ponto). O churrasco saía ótimo.
Quando vieram ao Rio, aproveitamos sua habilidade de churrasqueiro na casa de praia que um dos casais tinha em Pedra de Guaratiba, praia na saída do Rio para a rodovia Rio-Santos. A casa era equipada com uma churrasqueira ótima, muito bem construída, e uma quadra gramada de vôlei, onde jogávamos em família. Foram sábados memoráveis.
Após seu tempo de designação na Matriz, Credidio, promovido, voltou a São Paulo com a família. Eles mantiveram, entretanto, um programa de visitas ao Rio.
Quando a filha mais velha se casou e veio morar no Rio, passamos a ver Credidio e Leila com frequência. Mais, ainda, quando nasceu a primeira neta.
Sempre que vamos a São Paulo, Leilah e eu temos o hábito de reunir os amigos nossos de lá, pois não há tempo de visitá-los em separado. São amizades antigas, de origens diferentes: amigos de infância, parentes, colegas de escola. Quando Credidio e Leila se mudaram de volta para São Paulo, passaram a participar dessas reuniões. Entre meus guardados, achei uma foto do grupo na comemoração de meu aniversário de sessenta anos, em São Paulo, na casa de minha irmã, em que o casal, com Leilah, aparece assim:
Após se aposentar na IBM, Credidio trabalhou por algum tempo em programas de treinamento de executivos, de alto nível, que incluía exercícios com dramatização de situações de negócios. Esta atividade o levou a um curso de teatro (ele sempre buscava se aperfeiçoar no que fazia). Assisti a uma de suas participações nesse curso, em peça na qual seu papel era de um senhor mais velho muito divertido. Achei que ele se desempenhou muito bem e até me lembrei de um ator de cinema do meu tempo de infância – Mickey Rooney – com quem um amigo achava que o Credidio se parecia fisicamente.
Contudo, nos tempos mais recentes, seu grande interesse era vinho. Como não podia deixar de acontecer, ele se aprofundou no assunto – estudou desde os mais variados tipos de vinho, a comida que os acompanhava bem, e até os tipos de cálice mais adequados. Frequentava, diariamente, na Internet, os sites especializados e acabou fundando, principalmente com ex-colegas da IBM, em São Paulo, um clube de apreciadores de vinho, o Cluvinho, grande e duradouro sucesso entre os amigos.
Quando vinha ao Rio ele participava dos almoços de degustação do grupo do Gentil no Piraquê e era muito festejado.
Em minha crônica anterior, “Bloqueio”, escrevi que o Credidio, “pessoa extraordinária, agregadora, formava grupos de amigos em todo ambiente que frequentava” e que “nos deixou a lembrança de suas iniciativas, de suas tiradas espirituosas, às vezes radicais, sempre inteligentes, e de seus gestos de amizade”. O que narrei acima deve ter confirmado, junto aos leitores, estas considerações sobre o amigo.

Exemplos de suas afirmações radicais (ele usava muito “sempre” e “nunca”), que não eram necessariamente de sua autoria, mas das quais não me esqueço, são: “Se trabalho fosse uma coisa boa, não pagariam para a gente trabalhar.” e “Você já reparou que as pessoas nunca respondem ao que você pergunta?”.
Exemplos de seus gestos de amizade foram o carinho com que tratava minha mãe (presenteava-lhe vinhos de que ela gostava) e a atenção que dava ao meu sogro, também descendente de italianos, com quem conversava bastante sobre os mais variados assuntos. Finalmente, inesquecível para mim, foi seu comparecimento,  com Leila e alguns outros amigos heroicos, à minha noite de autógrafos na Bienal do Livro de São Paulo, no Anhembi, num sábado gelado de agosto de 2010. Abaixo, uma foto do evento.
Em resumo, essas são lembranças que tenho de meu amigo. Imagino, contudo, que muito mais terão de contar seus inúmeros amigos dos vários grupos de que participou, sempre muito ativamente e com destaque: colegas do ITA, da IBM e companheiros do vinho, principalmente. Ao reunirmos todas essas histórias, teremos algo muito interessante e valioso.
Se imortalidade se traduz pelas realizações e lembranças que deixamos, o nosso amigo já a conquistou.
Washington Luiz Bastos Conceição 



Nota: Hoje é dia de aniversário do Credidio.


2 comentários:

  1. Sinto muito a sua perda... Que a família esteja forte. Essas partidas muito rápidas não dá tempo para nos prepararmos...

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    1. A perda foi grande, mas a família é de mulheres fortes e ele continua conosco.
      Obrigado.

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