sábado, 7 de julho de 2012

Corrida de Caminhão

Estou transcrevendo hoje, do “Histórias do Terceiro Tempo”, uma das histórias que me levaram à aventura de escrever. Como digo na apresentação desse meu livro, o primeiro, elas estavam na minha cabeça havia vários anos e eu vinha prometendo a meus amigos e minha família escrevê-las um dia.
Para mim, a “Corrida de Caminhão” se tornou simbólica. Cheguei até a contá-la na comemoração dos meus setenta anos, seis anos antes de publicar o livro.
Washington Luiz Bastos Conceição



Pereira Barreto - Corrida de Caminhão

Manhã fria, oito horas, o mercedinho corria por uma estrada plana, de terra. O motorista dava o que podia, pois muitos outros caminhões – maiores, menores, mais velhos, mais novos – também corriam e pela mesma razão. A paisagem era de campo, capim rasteiro, meio queimado, poluída pela fumaça negra dos fornos rudimentares das olarias. Era uma corrida de caminhões em Aparecida do Taboado, então uma pequena cidade de Mato Grosso. Do outro lado do rio Paraná, para quem vai de São Paulo. A corrida era atrás de tijolos.
O que eu, um engenheiro garoto de 26 anos, estava fazendo na boleia de um caminhão, num lugar que não conhecia e aonde não voltaria mais?
Nós, os engenheiros da SENA, vínhamos fazendo vários serviços em Pereira Barreto, desde o projeto da rede de água até a construção de edifícios públicos: o Ginásio, o Posto de Saúde e outros. Praticamente nos estabelecemos lá, trabalhando também em cidades próximas. Os projetos e obras eram contratados pelo Estado mas a Prefeitura acompanhava de perto, pois o interesse maior era da cidade. O município tinha 5000 habitantes naquela época, na grande maioria colonos japoneses e seus descendentes.
Tornamo-nos, o Gilberto, o Gaia e eu, os “engenheiros locais”, muito prestigiados, relacionando-nos com as pessoas de destaque da cidade, especialmente o prefeito, Sr. Antônio Gomes da Silva, o presidente da Câmara Municipal, o juiz, o gerente do Banco do Brasil, os médicos e os principais comerciantes.
Revezávamo-nos nas viagens de S. Paulo a Pereira – parte de trem, parte de jardineira, como eles chamavam os ônibus intermunicipais da região. A impressão que tenho é de que viajávamos uns 800 quilômetros; hoje, a distância de São Paulo, informada pela Prefeitura, é de 621 quilômetros.
Tenho lembranças marcantes de Pereira Barreto:
- o primeiro trabalho, de levantamento topográfico para o projeto da rede de água, semelhante ao que fizéramos em Flórida Paulista, trabalho de sol a sol que, algumas vezes, era encerrado com uma boa caipirinha em companhia dos peões;
- o casamento do Gaia, que lá conheceu a Lelinha, ao qual compareceram todos os sócios, até o Chicão que habitualmente não viajava para lá;
- o acompanhamento pelo rádio, em 1958, na república em que nos hospedávamos – que foi uma boa solução encontrada pelo Gilberto, pois o hotel deixava muito a desejar – da final Brasil versus Suécia da Copa do Mundo e a comemoração da conquista da primeira copa mundial pela nossa seleção;
- e, como algo diferente, a Corrida de Caminhão, que comecei a narrar acima e continuo agora.
Na viagem em que aconteceu esta história, ao chegar a Pereira, encontrei a construção do colégio, um bom edifício de projeto padrão daquele tempo, em vias de se atrasar porque tijolos estavam em falta em toda a região. Era uma época de muita construção no interior, os fornecedores habituais não podiam nos atender no prazo necessário e a situação exigia ação de emergência. Como o prefeito também estava precisando de tijolos para suas próprias obras, combinamos fazer a compra em parceria – ele entrava com o caminhão e o motorista e eu faria a compra no Mato Grosso (hoje Mato Grosso do Sul) e dividiríamos a carga e as despesas.
Trato feito, madruguei no dia seguinte, um sábado, para enfrentar a viagem. A cabine do caminhão, em matéria de conforto, não era nada parecida com as de hoje (que têm rádio e ar condicionado) e a estrada, de terra, como a maioria das estradas daquele tempo, era uma estrada secundária com traçado rudimentar, curvas fechadas, rampas inclinadas e cruzava córregos sem pontes. A viagem até Porto Taboado, no Rio Paraná, do lado do Estado de São Paulo, foi apenas o início da aventura, levou umas duas horas. A seguir, depois de enfrentar uma fila razoável, fizemos a travessia de balsa. Nada parecido com a balsa que se usava naquele tempo para atravessar de Santos ao Guarujá. Era uma balsa pequena, rudimentar. O embarque e o desembarque de caminhões, por rampas íngremes, eram operações difíceis e até arriscadas. Mas Deus nos ajudou e cruzamos o Paraná sem problemas. Após subirmos na outra margem, pedimos as direções para as olarias e entramos na corrida de caminhão.
Não sei se algum dos caminhões ganhou o prêmio e conseguiu os tijolos. Vários competidores, como nós, não arranjaram tijolo algum. Imaginaram a minha situação, voltar para Pereira Barreto sem os tijolos, depois de tanta aventura?
Não me conformei e comecei a perguntar onde teria alguma chance – outras olarias, mesmo que tivesse de ir adiante. Fui à cidade e alguém me deu uma dica: o padre tinha comprado uma carga grande de tijolos mas ainda não tinha começado a obra. Talvez ele revendesse para mim. Consegui falar com o padre, negociamos e fiz a compra. O preço foi razoável, certamente mais caro do que em condições normais, mas valia a pena.
Como em toda aquela região, as olarias de lá  produziam tijolos “pó-de-mico” excelentes, resistentes, de forma que podiam ser descarregados a granel, como pedra, nem precisavam ser empilhados. A pilha de tijolos estava ao lado da igreja. Carregamos o caminhão, foi feita a nota de venda mas, então, surgiu a complicação: o fiscal da receita do Estado teria de emitir o documento de autorização para a saída da mercadoria do Estado do Mato Grosso – e, lembremos, era sábado e hora do almoço!
Bem, eu tinha de achar o fiscal e conseguir o documento, pois não estava nos meus planos passar o fim de semana na cidade e a obra estava esperando. Dei sorte de novo e me disseram – cidade pequena é ótima para essas coisas – que àquela hora o fiscal costumava beber uma cerveja na zona do meretrício. Fomos de caminhão, já carregado, para lá. Nada de mais, de dia os bares funcionavam como bares comuns, onde o pessoal da cidade se reunia para beber cerveja e jogar conversa fora. Achei o homem, ele me atendeu muito bem, deu a autorização e, não tenho certeza, mas acho que tomei um copo de cerveja com ele. Àquela hora, o dia estava ensolarado e quente e uma cervejinha caía muito bem.
A viagem de volta não apresentou surpresas – a balsa outra vez e a mesma estrada. Chegamos a Pereira Barreto no fim da tarde e com a sensação de ter atingido plenamente o objetivo.

Mas, durante todos estes anos (mais de cinquenta!) penso no irônico da história: comprei os tijolos do padre e consegui a documentação da compra na zona do meretrício.

Washington Luiz Bastos Conceição
Rio de Janeiro, janeiro de 2009







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